O país vive dias dramáticos e a fervura pode esquentar. O governo da presidente Dilma alcançou um grau elevado de inaptidão política, de desconfiança administrativa, e de péssimos resultados econômicos. O PIB do último trimestre sofreu um tombo de quase 2% e a queda no ano supera os 5%. A inflação e o desemprego, por sua vez, formam o outro lado da gangorra: sobem em oposição à contração. A esta crise, soma-se descobertas nauseantes da operação lava jato. Líderes políticos, empreiteiros e banqueiros já foram indiciados e alguns já foram condenados pelo envolvimento em tenebrosas transações. Parênteses: triste sina ter que repetir esta expressão. Há trinta anos foi cantarolada por Chico Buarque, no samba “Vai Passar, para espantar de vez os fantasmas dos períodos de exceção e as práticas malcheirosas entre o público e o privado. O cenário a frente não apresenta melhora no curto prazo. Nesse ambiente, não é de espantar que a popularidade do Governo seja a mais baixa desde Collor, o que não é exatamente um bom presságio.
O jogo está ruim, mas pode piorar. As outras peças do tabuleiro optaram por converter seu legitimo direito de fazer oposição em uma ação que pode comprometer não o jogo, mas as suas regras. Melhor dizendo, as regras da estabilidade democrática. Desde a vitória da chapa de Dilma, partidos de oposição têm se valido de repetidas estratégias para contestar o resultado eleitoral. Começou com um pedido esdrúxulo de auditoria nas urnas eletrônicas, levantando uma suspeita que nunca existiu. O resultado foi o óbvio: o PSDB teve que admitir a lisura da votação. Ato contínuo, deram início a uma campanha pelo impeachment, camuflada por pareceres e análises jurídicas. O desfecho do processo até aqui não cheira bem: o presidente da Câmara, valendo-se de sua prerrogativa funcional, aceitou o pedido formulado pela oposição no mesmo dia em que deputados do PT indicavam que votariam a favor do seguimento de seu processo de cassação. Os jornais acusaram uma chantagem aberta.
O governo é muito ruim, mas é razoável que uma presidente seja impedida por fatos que mais parecem pretextos? Se for este o caminho escolhido, corre-se um risco de uma fissura profunda na institucionalidade democrática.
A relação entre direito e política é uma composição de contrários combinados. A política é o conflito, a disputa, a busca pela formação de maiorias, e a tentativa de que os valores majoritários prevaleçam sobre os conjunturalmente derrotados. O direito é a regra, a estabilidade, o que garante que o conflito não se converta em guerra. É o direito que assegura à minoria o direito de se opor à maioria. Não se faz política sem regra e não se faz novas regras sem política. Por isso, não vale tudo. Se assim fosse não seria política, seria só conflito e desordem. E a ordem, se for mudada, precisa sempre ser daqui para frente, para garantir que as novas regras não tumultuem a estabilidade do presente.
Ao pensar no impeachment, é importante ter em conta esta combinação de contrários. O impeachment, embora seja um processo político, é balizado e legitimado pelo direito. Se pairar no ar uma sensação de injustiça, ou de exagero, uma percepção de que as regras do jogo não foram respeitadas, pode-se não só intensificar a crise presente, como principalmente comprometer a ordem democrática no futuro. Que grupo derrotado se acomodará na sua condição de minoria se o precedente passado sugere que viradas de mesa, ainda que bem costuradas, podem ocorrer?
Embora os defensores do impeachment se esforcem em argumentar que as pedaladas fiscais são crime de responsabilidade, a tese é difícil mesmo juridicamente e quase impossível de se construir no debate popular. Ainda que se admita a violação à Lei de Responsabilidade Fiscal, pelo fato dos bancos públicos terem atuado a descoberto, sem repasses do Tesouro, o que representaria um financiamento ilegal dos bancos públicos ao Tesouro, parece desproporcional resultar na interrupção de um mandato eleito pelo voto. No presidencialismo, diferentemente do parlamentarismo, a legitimidade do presidente não decorre da composição parlamentar, mas sim de uma relação direta estabelecida com o eleitor, na eleição. Por isso, seu funcionamento tem características diferentes: um presidente só cai se cometer um crime. Todo o mais, inclusive o estelionato eleitoral cometido por Dilma, é matéria de eleição: seu partido será punido. Aliás, é o que já tende a ocorrer nas eleições municipais de 2016. A questão, portanto, não é se os equívocos de Dilma terão ou não consequência, mas qual a consequência correta. E o impeachment não parece ser a resposta.
Isso porque, a esta altura, o impeachment parece ser risco demais. No jogo político-partidário, pode representar uma combinação temerária entre uma oposição sem fortuna eleitoral e as estratégias sem nenhuma virtú do presidente da câmara. Na sociedade, pode levar a um esgarçamento e a um embrutecimento ainda maior das relações políticas. Primeiro porque o fundamento do crime de responsabilidade é muito menos evidente do que o ocorrido no caso Collor. Segundo porque a construção social do impeachment, em 1992, contou com ampla base social e com o patrocínio de figuras com densidade política e intelectual, a saber, o presidente nacional da OAB, Marcelo Lavenere, e o presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho. Não é o caso agora. Hélio Bicudo é uma personalidade importante da democracia, mas é também entendido como um ex-petista ressentido. Os demais autores do pedido têm conhecidas relações políticas com a oposição e um deles sequer ocupa o topo da carreira acadêmica. Por fim, o governo Dilma e o PT, embora combalidos, têm ainda capital político e representatividade entre movimentos sociais, artistas, juristas, intelectuais e formadores de opinião, algo que Collor nunca teve.
Por ora, se vier o impeachment, virá com gosto amargo e de difícil digestão para uma parcela significativa do ambiente político do país. A página não será virada facilmente como foi há duas décadas e isso não é bom para as décadas porvir.
*Professor na Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas – FGV Direito SP
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