“Trata-se de um jogo combinado, inconstitucional, entre o juiz Sergio Moro e os procuradores. Lá em Curitiba, a Polícia Federal, os procuradores e o juiz atuam em conjunto.” Esta é a opinião do ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão sobre a aceitação da denúncia contra Luiz Inácio Lula da Silva pelo juiz Sergio Moro em ação na qual o ex-presidente é acusado de corrupção e lavagem de dinheiro. Aragão afirma que o modo de atuar da força-tarefa da Lava Jato e do juiz Moro é francamente inconstitucional. “Investigação quem faz é a polícia, no caso a federal. Ao Ministério Público Federal caberia analisar se as investigações da Polícia Federal estão corretas, se ocorreu a apuração correta dos fatos, enfim, de fiscalizar a ação policial e determinar correções e mudanças que se mostrassem necessárias. E ao Judiciário, com toda a isenção, caberia julgar se a denúncia finalmente encaminhada pelo Ministério Público seria procedente ou não para só então emitir uma decisão.”
Para Aragão, seria o caso de ser impetrado um habeas corpus para trancar a ação penal até que as distorções e o trabalho conjunto claramente inconstitucional fossem corrigidos. “Uma denúncia tem que ser concisa, precisa, se atendo aos resultados das investigações e aos fatos. Nunca poderia ser uma obra resultado da fantasia de um procurador ou promotor, como vem ocorrendo em Curitiba,” critica Aragão, que é subprocurador-geral da República e professor de Direito Penal da Universidade de Brasília. Aragão comenta ainda que foi o próprio coordenador da força-tarefa, o procurador Deltan Dallagnol, que, em entrevista recente, admitiu o trabalho conjunto, e inconstitucional, entre procuradores e juiz, ao falar que ele e Moro são uma equipe. “Os dois são amigos, dão aulas na mesma instituição de ensino, agem como se fossem um só. Assim, ninguém deveria ficar surpreso com a decisão do juiz aceitando tudo que o procurador Dallagnol apresenta,” afirma Aragão.
Brasileiros – O ex-presidente Lula se tornou réu em ação na qual é acusado de corrupção e lavagem de dinheiro. Como o senhor recebeu a decisão do juiz Sergio Moro?
Eugênio Aragão – Trata-se de um jogo combinado, inconstitucional, entre o juiz Sergio Moro e os procuradores. Lá em Curitiba, a Polícia Federal, os procuradores e o juiz atuam em conjunto. Ninguém deveria ficar surpreso com a decisão do juiz.
No meio jurídico, sobraram críticas à denúncia oferecida pelos procuradores. Até antipetistas apontaram sua fragilidade. Como a denúncia prosperou?
Trata-se de um grupo de pessoas que estão agindo sem nenhum controle e sem nenhuma accountability. É um grupo de pessoas que estão correndo soltas, completamente descontroladas. Quando as pessoas se colocam em cima de um pedestal, se achando o salvador do mundo, não aceitam sugestões nem conselhos. O que isso significa? As pessoas não aceitam crítica, não fazem autocrítica. Então, em primeiro lugar, eles se apresentaram em um hotel de luxo, em Curitiba. Ou seja, alguém está pagando essa conta.
Provavelmente nós, contribuintes.
Provavelmente nós. E apresentaram um Power Point chulé, com uma série de ilações. A apresentação foi de tal primitivismo, de tal generalidade que eles poderiam colocar qualquer um de nós lá dentro. Outro erro recorrente do Ministério Público é sacrificar a realidade para manter os seus castelos teóricos. Quando tem um fato complexo, o Ministério Público trabalha com um modelo. Trabalhar com um modelo para tentar explicar fatos complexos é perfeitamente legítimo. Só que esse modelo é uma referência preliminar. É claro que na medida em que a investigação avança, esse modelo tem de ter flexibilidade suficiente para ser alterado, conforme as novas constatações.
Indicando um ou outro caminho?
Exatamente. Só que os integrantes da força-tarefa, até por uma questão de vaidade, ficam insistindo no modelo deles. E ficam socando a prova obtida dentro das categorias que criaram, para não ter que abrir mão do modelo.
O senhor disse “socando as provas”?
Socando. Com um pilão, dentro de cada uma das categorias que criaram, como, por exemplo, o Núcleo Operacional, o Núcleo Econômico ou o Núcleo Político. Então, em vez de constatar que algo não se encaixa, de ver que não é bem como o modelo e descolar de um canto para o outro, eles vão socando, socando, botando cada uma das provas em categorias prévias. O que sai dali é um quadro de Salvador Dali. Um quadro de absurdos. Nada daquilo que foi apresentado em Curitiba é minimamente plausível. Parece muito mais uma questão de fé do que prova.
Quando chamam o ex-presidente de “comandante máximo”, “grande general” e “grande maestro” de um esquema de corrupção e não apresentam prova, há pré-julgamento?
Com certeza. Mostra que eles estão muito pouco aptos a trabalhar nessa ação, porque não têm a isenção suficiente. Adjetivaram tanto que mostraram claramente uma indisposição pessoal. E uma indisposição ideológica. Isso ficou muito claro. Daí, eles se tornaram altamente suspeitos. Eu até diria que se tornaram pornograficamente suspeitos.
Dentro do Ministério Público, não existe uma forma de controlar situações desse tipo?
Para mim, essa coisa de força-tarefa, é para FBI, para Miami Vice (série americana de tevê). Não tem tradição no Brasil. A primeira que houve foi durante a gestão do procurador da República Claudio Fonteles, para tratar do caso Banestado, que também, por sinal, tinha como juiz-coordenador o Sergio Moro.
E alguns dos procuradores da força-tarefa.
Também. Me parece que não foi uma boa experiência. Tanto não foi que quando Antonio Fernando de Souza (o sucessor de Fonteles) assumiu, a primeira coisa que fez foi acabar com a força-tarefa. O procurador-geral seguinte, Roberto Gurgel, também nunca aceitou força-tarefa. Por duas razões. A primeira é de política processual. Quem cria uma força-tarefa tem obrigação de apresentar um resultado estrambólico. Forças-tarefas não são criadas para arquivar processos. Há pressão para resultados. Portanto, quem cria uma força-tarefa tem o dever de apresentar uma condenação. Já existe um pré-julgamento. A segunda razão é o processo penal brasileiro, que tem características distintas de outros países. No processo penal brasileiro, o Ministério Público, a polícia e o Judiciário são atores extremamente empoderados. Muito mais do que em qualquer outro modelo no Direito Comparado. Na Europa continental, de uma forma geral, a polícia é submetida ao Ministério do Interior, que manda na polícia. Manda mesmo. Diz o que a polícia tem de fazer, o que ela não tem de fazer. O Ministério Público, por sua vez, é subordinado ao Ministério da Justiça, que também exerce seu poder hierárquico e disciplinar sobre o Ministério Público. E não só isso. O Ministério da Justiça é quem nomeia o presidente do tribunal, que exerce poder disciplinar sobre os juízes. Então, há três atores sob forte supervisão da administração pública. Qualquer tipo de recurso desses atores contra eventuais abusos das autoridades de supervisão é resolvido no tribunal administrativo. No Brasil não. No Brasil você tem uma polícia que é tão forte que derruba ministro da Justiça. Vários ministros da Justiça tiveram que deixar o cargo porque brigaram com o diretor-geral da Polícia Federal.
Por exemplo?
Paulo Brossard. Quando Paulo Brossard começou a se desentender com Romeu Tuma (diretor da Polícia Federal entre 1985 e 1992), o que aconteceu? Sarney (o então presidente José Sarney) teve que colocá-lo no Supremo Tribunal Federal.
Tirar do ministério?
Tirar o ministro porque não podia tirar o Romeu Tuma. Ou seja, o diretor-geral é mais forte do que o ministro. O Ministério Público é um império. Dentro da Constituição, ele não tem independência. Acaba tendo é soberania. Porque ninguém toca neste Ministério Público. O Judiciário, por sua vez, hoje tem um poder tão grande que manda até projeto de lei para o Congresso, para fixar seus vencimentos. Também está altamente empoderado. Numa força-tarefa, onde existe uma mescla entre estes três atores, qualquer tipo de controle é inviabilizado.
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