A Operação Lava Jato completou 30 meses nos últimos dias cercada de elogios decorrentes de sua importância para o conjunto da sociedade brasileira. Ao escancarar, através de investigações sistematicamente apoiadas pelo mecanismo da delação premiada, as relações incestuosas entre empresas públicas, empresas privadas e partidos políticos, a Lava Jato confirmou aquilo que todos tinham convicção de que existia, mas não tinham provas: o financiamento empresarial de campanha tinha origem, em grande medida, em benefícios espúrios concedidos a empresas privadas em contratos com empresas públicas.
Se por um lado parte desse complexo enredo criminoso de financiamento eleitoral foi desmascarada (basicamente aquela ligada à Petrobras), potencialmente levando a punição de corruptos e corruptores, por outro lado a operação vem cercada de dúvidas acerca de seus procedimentos jurídicos e objetivos políticos. A adoção de prisões como mecanismo de extração de delações, a supervalorização das palavras de criminosos confessos e a seletividade política das apurações criminais, assim como a condução deliberadamente midiática da operação, têm espantado alguns analistas do meio jurídico e intelectuais como um todo.
Os evidentes aspectos e legados positivos da operação, demonstrados diariamente pela imprensa brasileira, não devem impedir que se realize uma crítica sobre o legado negativo que a operação nos deixa. Como paralelo histórico, nunca é demais lembrar a Operação Mãos Limpas italiana, que, sob o pretexto de combater a corrupção, legou à sociedade italiana a criminalização da atividade política, garantindo a ascensão do governo extremamente corrupto de Silvio Berlusconi.
Correndo o risco de ser acusado de defensor de corruptos ou detrator da verdadeira justiça, este texto busca elencar alguns aspectos negativos que a Operação Lava Jato deixará para a sociedade brasileira, seja no campo econômico, seja no social, político ou jurídico. Obviamente isso não significa dizer que a operação deveria ser encerrada, ou mesmo que o balanço final da operação será negativo no futuro. Significa apenas que, como todo fenômeno social, a Lava Jato deve ser compreendida em todas as suas dimensões de maneira crítica, recusando-se o fácil endeusamento de personagens ou a defesa religiosa de suas ações.
1. A criminalização da política como forma de mediação social
Talvez o maior legado negativo da operação tenha sido o de criminalizar a atividade política, criando-se a impressão de que política e corrupção andam necessariamente de mãos dadas. Obviamente, quando se apura as ações criminosas realizadas por políticos, essa consequência no imaginário social pode se tornar inevitável, mas deveria ser combatida.
A Operação Lava Jato, ao invés de combater, alimentou esta impressão, ao a) permitir o vazamento deliberado e seletivo de delações e gravações telefônicas, antes mesmo de apuradas; b) proceder prisões, antes mesmo do julgamento e c) criminalizar atividades inerentes à política moderna, como a promoção de empresas brasileiras no exterior ou as doações até então legais de recursos empresariais, mesmo antes da apuração rigorosa de suas eventuais fontes ilícitas.
Essa criminalização da atividade política abre as portas para a negação da política, que se revela através do cadente apreço do Brasileiro pela democracia (que recuou de 54% para 32% em um ano, segundo pesquisa do Latinobarómetro), assim como da ascensão de lideranças carismáticas/midiáticas, que prometem resolver os problemas de mediação sociais típicas da atividade política através de truques de gestão empresarial ou de medidas autoritárias.
2. A punição das empresas e de seus trabalhadores
Outro legado negativo da Lava Jato diz respeito aos impactos das investigações na atividade econômica e na situação empresarial. Ao defender que as empresas sejam punidas com a proibição de firmar novos contratos com o setor público, os promotores da operação patrocinaram uma fragilização da estrutura empresarial nacional, levando várias empresas à beira da insolvência.
É evidente que, em caso de fraudes, tanto empresas quanto empresários responsáveis pelos crimes devem sofrer alguma punição. No entanto, a experiência internacional nos ensina que a punição para a empresa não deve inviabilizar suas atividades, sob o risco de aprofundamento da crise social e aumento do desemprego. As punições para as empresas devem ser negociadas em multas pecuniárias e medidas de reforma institucional, que garantam a transparência e lisura de suas atividades no futuro, em troca da colaboração da instituição para o aprofundamento das investigações.
A forma como foi conduzida a punição às empresas de engenharia brasileira, por exemplo, foge completamente da experiência internacional, enfraquecendo um dos setores mais dinâmicos e que mais geram empregos no Brasil. Tais punições abrem espaço para a invasão de empresas estrangeiras do mesmo setor, que invariavelmente estão envolvidas em escândalos de corrupção ao redor do mundo. A troca não apenas enfraquece as empresas brasileiras como cria uma situação de aumento do desemprego e perda de competitividade da economia brasileira em relação ao resto do mundo.
3. A banalização da prisão como instrumento de coerção
Um terceiro fator é a banalização dos mecanismos de prisão temporária e prisão preventiva, mesmo quando evidentemente não há necessidade para tal procedimento. Um exemplo recente é emblemático de tal artifício: após prender o ex-ministro Guido Mantega enquanto acompanhava sua esposa em uma cirurgia, o juiz Sergio Moro revogou imediatamente o pedido de prisão que ele mesmo havia emitido, revelando a total irrelevância do pedido inicial.
A prisão é um instrumento penal grave, que pode servir para salvaguardar a sociedade e as investigações daqueles que querem prejudicá-las. No entanto, é inaceitável que em um Estado de direito se aceite a prisão como mecanismo de obtenção de provas testemunhais, ou mesmo como pressuposto para prevenção de atividades criminosas que não se conseguiu provar a existência. A banalização da prisão como instrumento de obtenção de provas e testemunhos é típica de sociedades autoritárias, mesmo que reguladas por um ordenamento legal que a legitime. O autoritarismo também pode ser respaldado pela lei, bastando lembrar que as ditaduras possuem costumeiramente a validação legal e constitucional dos tribunais de seus países.
4. A execração seletiva de partidos e políticos
As investigações e decisões judiciais deveriam se guiar pela imparcialidade. No caso da Operação Lava Jato, no entanto, existem diversas indicações de que a Justiça tirou a venda da imparcialidade e só tem olhos para um campo político, se negando a investigar as acusações sobre os outros.
A lentidão nas investigações das delações contra figuras como Aécio Neves e seu partido, o PSDB, indica uma má vontade por parte dos investigadores com delatores que insistem em expandir as apurações para o campo político da antiga oposição. Tal postura alcançou seu auge na ameaça pública de Sergio Moro de cancelar a delação de Leo Pinheiro (OAS), por este ter afirmado que as obras no famoso “tríplex” do Guarujá e no “sítio de Atibaia” frequentado pelo ex-presidente Lula foram meros agrados da empresa, não fruto de crime ou corrupção. Tal tipo de postura mandou um claro recado aos demais delatores: ou se incrimina Lula ou sua delação será desconsiderada e o réu permanecerá preso, revelando a dimensão político-partidária das investigações.
5. A aceitação de um estado de exceção jurídico
Na esteira da aceitação de prisões desnecessárias e da aberta perseguição criminal contra uma figura ou partido, as ações do juiz Sergio Moro foram questionadas na Justiça Federal. Em resposta ao requerimento apresentado, a quarta turma do TRF publicou uma decisão que revelou uma aceitação explícita de um estado de exceção jurídico, supostamente justificada pela situação “excepcional” que o Brasil enfrenta.
O TRF afirma em decisão colegiada que os processos da Lava Jato “trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”, que superam “regramento genérico” legal brasileiro. Ou seja, admite que as leis podem ser flexibilizadas e soluções inovadoras podem ser encontradas para conduzir as investigações da Lava Jato. Essa aceitação do estado de exceção revela muito sobre o clima de caça às bruxas que se instalou no Brasil, em que não apenas a política, mas as próprias garantias legais e constitucionais podem ser superadas com o objetivo de garantir liberdade para a persecução criminal unidirecional.
6. O impacto eleitoral e nas instituições democráticas
Por fim, parece claro que a Operação Lava Jato adentrou de vez na esfera política ao realizar seguidas ações policiais e midiáticas na véspera das eleições municipais, em particular a denúncia espetaculosa (mas fragilmente fundamentada) contra Lula e a prisão de ex-ministros petistas. Nenhuma denúncia foi apresentada contra integrantes de outros partidos, mesmo com os promotores possuindo farto material testemunhal para tal.
Ao deslegitimar a atividade política e se valer de um Estado de exceção jurídica para realizar prisões desnecessárias e denúncias puramente midiáticas, os procuradores da Lava Jato e o sistema jurídico brasileiro adentraram de vez a esfera partidária e se organizaram como um ator político fundamental, que ajudou a definir os resultados eleitorais em 2016. O crescimento de partidos da atual base de apoio do governo coincide com a completa imobilidade da operação em investigar tais partidos e seus líderes.
Se a Lava Jato deixa o legado positivo de escancarar uma parte das relações criminosas que fundamentavam o sistema eleitoral e político baseado no financiamento empresarial de campanhas, também parece nos legar uma institucionalidade jurídica mais frágil, típica de estados de exceção, e uma Justiça abertamente partidarizada, que indevidamente se tornou um agente político relevante.
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