Vera Malaguti Batista, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), garante que a situação só irá piorar caso a redução da maioridade penal seja aprovada. Segundo ela, a proposta fará com que jovens que cometem infrações leves sejam jogados “dentro de facções, obrigando-os a se filiarem”. Em comparação com o Brasil do século 19, a professora do curso de Pós-Graduação em Criminologia e Direito Penal do Instituto Superior do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro diz que o medo da rebelião escrava motivou o endurecimento penal para 14 anos, na época. Sobre o cenário atual, os argumentos favoráveis à redução possuem o mesmo motivo: o medo disseminado, gerando conservadorismo e discurso de ódio vingativo contra os jovens.
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Pós-doutora em Ciência da Saúde Coletiva na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ela ainda defende um plebiscito para promover um debate amplo sobre o assunto, que não acontece porque os políticos seriam reféns da grande mídia e faltaria coragem dessa classe para “afrontar as opiniões hegemônicas”. Leia a entrevista concedida à Brasileiros:
Brasileiros – Como você vê essa questão da redução da maioridade penal na situação política do País?
Vera Malaguti Batista: Realmente um País que não tem um bom projeto educacional partir para um projeto penal é um sintoma de um momento que vivemos no Brasil: Uma representação política completamente contaminada por uma pauta não só conservadora, mas oportunista e ao mesmo tempo suicida. Se nós aprovarmos isso, como se está aprovando tudo sem a menor discussão nacional, será suicídio. No Uruguai houve um plebiscito para discutir a redução da maioridade penal. E perdeu por que existiu a chance de opiniões não hegemônicas, como a minha, aparecerem com o mesmo tempo de convencimento que esse tipo de jornalismo policialesco, do qual a classe política é refém. Falta coragem para a classe política afrontar as opiniões hegemônicas e abrir um debate nacional verdadeiro sobre questões tão pungentes. A terceirização dos trabalhadores é outro exemplo.
Por que esse debate não acontece?
Houve por parte dos meios de comunicação uma grande campanha de convencimento de que penas mais duras resolveriam a convivência cotidiana. Mas o que percebemos é que não só não se resolve como também agrega outros problemas: o Brasil é o terceiro país do mundo com maior população carcerária e o que tem a maior taxa de crescimento. Em comparação, percebemos que quanto mais endurecemos a política criminal de drogas, piores nós ficamos. Há 10 anos, no Rio de Janeiro não tinha crack e, desde então, essa guerra só aumentou o problema na comercialização, na produção e no consumo. Com relação ao sistema penal, podemos dizer a mesma coisa. Se essa questão fosse uma discussão livre em que todos pudessem falar, poderíamos passar esses diferentes pontos de vista. Houve um investimento em campanhas apostando na solução penal para os nossos problemas, de que se deve prender por qualquer motivo. De novo, agora falando do País, estamos piores do que há 20 anos nos índices de homicídios, letalidade policial e, principalmente, sistema carcerário – que é uma vergonha e pouco publicado pela mídia. Muitas pessoas não têm nem ideia.
Um dos argumentos de quem defende a redução é de que um jovem que é capaz de votar e participar da decisão política do País, tem também a capacidade de responder por seus crimes como um adulto. O que você tem a dizer sobre isso?
Não acho que um jovem deva responder como adulto por crimes cometidos. Quando se faz uma equiparação pelo negativo pedagógico, mais punindo do que ensinando, eu não vejo contribuição nenhuma. Acredito que se eles podem votar e participar da cidadania na juventude, não significa que devamos parar de protegê-los. Parece que quem faz esse argumento tem uma bronca dos jovens: “Ah! Se você pode votar, pode também apanhar e apodrecer numa prisão”. O direito penal liberal surgiu na ambiência revolucionária do século 18 justamente para conter o poder punitivo absolutista e a vingança na Justiça. Em minha tese de doutorado, fiz uma pesquisa sobre o discurso do medo do crime entre o Rio de Janeiro do século 19 e o contemporâneo. Conclui-se que quando se dissemina medo, há mais conservadorismo, mais fascismo, pois passa a existir uma mentalidade de defesa. E é exatamente isso que acontece com a questão da redução da maioridade penal. Esse pensamento de fortaleza e muros divisórios se torna um discurso de ódio vingativo.
Explique melhor essa comparação do medo nessas duas épocas na cidade do Rio de Janeiro
Eu faço pesquisas sobre a criminalidade no centro da cidade em comparação principalmente com o tempo da escravidão. Na época em que as pessoas achavam que a escravidão fazia parte da natureza, foi o medo da rebelião escrava que motivou o endurecimento penal. Não era visto como justo, pois atentava contra a ordem imperial. Tem gente que está sugerindo a redução para 10 anos. No Brasil escravista a idade penal era de 14 anos! Vários acadêmicos como Freud, Jean Delumeau e Zygmunt Bauman estudaram que o medo nos faz conservadores. O medo sempre foi usado nas conjunturas brasileiras de crise para conter o protagonismo popular, ou seja, tratando o próprio povo como imoral, sujo, perigoso. É esse discurso que está se construindo em relação à juventude também.
E caso seja aprovada a redução da maioridade penal?
Como professora de criminologia, eu te garanto que a situação vai piorar. Nós vamos transferir meninos que cometem infrações leves e jogá-los dentro de facções, obrigando-os a se filiarem. Só irá aumentar o horizonte de isolamento e diminuir radicalmente as perspectivas de uma reintegração desses meninos que cometeram pequenos erros. Vamos perder qualquer chance de recuperar suas potências de produção, de sonhar, estudar, afetividades… Todas as possibilidades de vida que uma juventude enseja. Eu pergunto, como se pode pensar que, tendo em vista os aspectos citados, prender a nossa juventude em prisões comuns pode solucionar tudo? Todas as instituições de acolhimento já preveem uma punição e são tão terríveis quanto as prisões de adultos. Eu não consigo enxergar nenhuma vantagem nisso!
Leia a nota do Instituto Carioca de Criminologia sobre a redução da maioridade:
O Instituto Carioca de Criminologia vem a público repudiar com veemência a nova campanha – desta vez, com o apoio de parlamentares – em favor da redução da idade-limite da imputabilidade penal. Antes de mais nada, a iniciativa está na contramão da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança (aprovada, ratificada e promulgada no Brasil), cujo artigo 37 preconiza que a privação de liberdade, que cabe utilizar “como último recurso”, tenha “a duração mais breve possível” (al. b), e seja “separada dos adultos” (al. c). Nós, que jamais pensamos em denunciar a Convenção de Viena – sob cuja égide mantém-se uma legislação interna de drogas responsável pela execução sumária diária de duas ou três crianças ou adolescentes pobres – seríamos capazes de denunciar a Convenção sobre os Direitos da Criança para restringir direitos dos sobreviventes da estúpida “guerra” perdida?
Ainda preliminarmente, observe-se que os constituintes quiseram que a juventude brasileira estivesse imune ao poder punitivo,e fossem os adolescentes infratores submetidos a medidas de caráter socioeducativo. Não constituirá tal norma uma cláusula pétrea? O argumento topológico – não estar a norma incluída nos incisos do artigo 5º – é inconvincente, e não prevaleceu quando esteve em julgamento o princípio da anterioridade tributária, que a Corte Suprema considerou protegido pela proibição de regresso (art. 60, § 4º, inc. IV CR). A proposta de redução da maioridade penal é regressiva, e aponta para o patamar de 14 anos praticado por nosso código de 1890.
Para além, contudo, desses óbices intransponíveis, está a inconveniência da proposta. A despeito das terríveis condições sob as quais se dá a privação da liberdade nos estabelecimentos para adolescentes infratores – e algumas peças publicitárias da campanha, as matérias do Jornal Nacional há duas semanas sobre tais estabelecimentos, revelaram sua prática similitude com as carceragens para adultos – e a despeito da precariedade de dados estatísticos, é possível afirmar que a reincidência dos adolescentes infratores egressos é menor do que a astronômica reincidência penitenciária adulta. Assim, a proposta carrega em si esta inconveniência notável: ela aumentará a reincidência dos jovens criminalizados, com o resultado concreto de mais crimes. Pior ainda: ela aproximará os adolescentes infratores das facções que se estabelecem e se reproduzem no sistema penitenciário, impondo-lhes através da sociabilidade carcerária uma viagem sem retorno.
Embora a grande mídia outorgue escandalosa publicidade a delitos graves com a participação de algum(ns) adolescente(s), sempre utilizados para reavivar essa velha campanha, a participação real da delinquência juvenil no total da criminalização é pouco significativa (ao contrário das execuções policiais sumárias de crianças e adolescentes).
O Instituto Carioca de Criminologia manifesta sua esperança de que o Congresso Nacional não sucumbirá a essa campanha e não demonstrará ao mundo que, ao invés de ministrar educação, saúde e cultura a nossos adolescentes, deliberamos trata-los pelo encarceramento.
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