O que questionar na Reforma do Ensino Médio

Foto: Marcos Santos/Fotos Públicas
Foto: Marcos Santos/Fotos Públicas

O Plenário da Câmara dos Deputados concluiu nessa terça-feira (13) a votação da Medida Provisória 746/16, que reformula o ensino médio, segmentando as disciplinas segundo áreas do conhecimento e propondo a implementação do ensino integral com apoio financeiro da União ao setor público. A matéria agora passará por votação no Senado.

O PLV (Projeto de Lei de Conversão) 34/2016 apresenta alguns avanços em relação à redação inicial da MP 746/2016, mas, ao mesmo tempo, traz para o debate alguns pontos que precisam de atenção e cuidado, antes da discussão no Senado:

– O aumento da carga horária do Ensino Médio em todas as escolas para cinco horas (total de mil horas aula/ano), em no máximo cinco anos, abrindo espaço para maior tempo de exposição ao conhecimento e para a implementação da BNCC (Base Nacional Curricular Comum) é um avanço, embora seja preocupante a inexistência de um prazo para a ampliação da jornada para sete horas (total de 1.400 horas aula/ano).

– Outro aspecto que ainda não está claro é de que forma as redes estaduais de ensino deverão articular a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) ‒ que ainda não está pronta ‒ com a parte diversificada do currículo e com a oferta dos percursos formativos, nem como será, exatamente, a divisão do tempo para cada uma dessas frentes curriculares. Como garantir que não existirá um achatamento do tempo destinado a cumprir a BNCC, a parte diversificada e os percursos formativos, considerando-se os cinco anos de prazo para que todas as escolas tenham no mínimo cinco horas diárias (total de mil horas aula/ano)?

– É um acerto a volta, no texto do PLC, das Artes e da Educação Física (essa última com sua prática facultada ao aluno). Pesquisas demonstram como ambas as disciplinas são essenciais ao desenvolvimento integral dos estudantes. Estão claramente ligadas também à aprendizagem da área de Linguagens (o teatro, as artes plásticas, a música etc.).

– De maneira geral, a proposta da flexibilidade nas disciplinas do Ensino Médio é positiva e importante porque ela reflete o que a juventude atual está desejando, tem ligação com o mundo contemporâneo e oferece variados percursos do conhecimento; o percurso não precisa ser o mesmo para todo mundo. No entanto, é um ponto de atenção a forma como se dará, efetivamente, a oferta dos itinerários formativos. Dado que o texto do PLC propõe a inclusão dos percursos formativos “conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino” (Art. 4º), há o perigo de a oferta ocorrer principalmente conforme as capacidades das redes de ensino, e não de acordo com os contextos locais e os interesses das diversas juventudes. Municípios e estados com poucos recursos, precariedade na infraestrutura escolar, menos capital humanos ou poucas chances de parcerias com setores da indústria, comércio ou terceiro setor tenderão a ofertar um leque reduzido, diminuindo as opções de escolha dos jovens e elevando, assim, as desigualdades regionais já existentes no país. A viabilidade desses percursos nessas localidades ainda carece de uma legislação que apoie uma articulação federativa. Além disso, seria fundamental aprofundar a concepção que embasa os percursos e, mais ainda, ter uma direção do MEC que aponte as necessidades de formação futuras do país. Estamos hoje com déficits de algumas profissões? Quais são elas? Ou seja, deveria haver um documento orientador que priorize e que direcione os percursos.

– O texto do PLC considera que as escolas deverão orientar os alunos no processo de escolha das áreas de conhecimento ou de atuação profissional, o que é positivo, mas não deixa claro como, exatamente, as escolas farão isso, nem se existirão formações específicas para que os educadores possam realizar tal tarefa. Não podemos nos esquecer de que essas escolhas são fundamentalmente influenciadas pela condição social de cada jovem e pelas oportunidades educacionais a que teve acesso ao longo da vida. Se não contar com apoio adequado para a escolha, o jovem de regiões mais vulneráveis será penalizado, aumentando-se as desigualdades educacionais já existentes.

– Quanto à formação dos docentes ‒ essencial à área da Educação ‒, o texto do PLC não enfrenta a questão dos baixos salários nem das condições inadequadas de trabalho, dois fatores da baixa atratividade da profissão de professor no país. Entretanto, sem adotar medidas de médio e longo prazos de formação inicial e continuada de qualidade e valorização do professor, o Brasil não assegurará um corpo docente capaz de atender à necessidade de aprofundamento que os percursos formativos propostos exigem. Gestores das escolas também precisam ser formados, pois são os responsáveis pelas condições, na unidade escolar, de implantação, com qualidade, da nova proposta.

– Sobre a possibilidade de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias serem oferecidas no EJA (Educação de Jovens e Adultos) e do ensino noturno regular, há que se verificar essa adoção com cuidado. Isso porque, entre outros aspectos, a educação a distância exige alunos autônomos, mas existe ainda uma fragilidade na formação escolar que não consegue assegurar que os alunos que concluem o Ensino Fundamental dominem esses procedimentos básicos de estudo. Em resumo, as políticas precisam garantir que os alunos que têm como única opção de estudo a escola de tempo parcial ou as turmas do noturno tenham acesso aos mesmos conhecimentos dos que cursam o diurno e as escolas de tempo integral.

– No que se refere à implementação da reforma, o novo texto avança ao aumentar o apoio financeiro da União aos estados de 4 para 10 anos, para a educação integral. Mas, infelizmente, deve atingir apenas uma minoria de escolas e alunos no país (500 mil estudantes), o que eleva as desigualdades e defasagens já existentes.

– Outro ponto de alerta é que o texto ainda remete várias decisões às redes de ensino, que são bastante diversas no país quanto à infraestrutura e à capacidade financeira para execução das ações. Por fim, vale registrar que uma política educacional tem, necessariamente, várias dimensões (currículo, infraestrutura, gestão, formação etc.) que precisam ser levadas em conta, em sua totalidade e integralidade, e com relações entre elas. Por isso, a reforma do Ensino Médio não pode ser feita somente com inclusão e exclusão de partes, o que pode redundar em uma “colcha de retalhos” que desconsidera todos os possíveis impactos para a Educação do país.

*Maria Alice Setubal, a Neca Setubal, é formada em ciências sociais pela USP, com mestrado em ciências políticas pela mesma instituição e com doutorado em psicologia da educação pela PUC-SP. Preside os conselhos do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e da Fundação Tide Setubal.


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