O mês de maio de 2006 ficou marcado como um dos mais violentos da história de São Paulo. O ano de eleição propiciou um terreno fértil para uma crise desenfreada na segurança pública, e mais de 560 pessoas foram assassinadas entre os dias 12 e 21 daquele mês, em ataques criminosos e represálias de policiais. O dia mais crítico foi, irônica e catastroficamente, o Dia das Mães, tradicionalmente comemorado no segundo domingo de maio, onde 107 pessoas foram mortas. Dentre as mães dilaceradas pela negligência do Estado estava Débora Maria da Silva, mãe de Rogério Silva dos Santos, então com 29 anos.
O primogênito de Débora foi assassinado em um posto de gasolina, um dia depois do domingo sangrento, em Santos, no litoral de São Paulo. Em 2009, uma pesquisa intitulada Análise dos Impactos dos Ataques do PCC revelou que, dos 564 mortos, 505 eram civis. Após a morte de Rogério, Débora criou forças para criar o Movimento Independente Mães de Maio, que busca uma solução e reparação por estes crimes, até hoje nunca desvendados. O movimento já reúne dezenas de mulheres que tiveram seus filhos assassinados por policiais ou agentes de segurança.
Em entrevista à Brasileiros para nossa série especial sobre a redução da maioridade penal, Débora falou sobre a necessidade de criar políticas públicas, principalmente de educação, para os jovens da periferia. ” O menino tem o direito de querer um tênis de um milhão, por que o capitalismo colocou ele na vitrine. Esse menor fica abandonado, não existe uma escola para educar, e ele quer andar na moda. O que ele faz para andar na moda? Vai roubar para comprar aquele tênis, vai roubar para comprar o que ele quiser”
Leia a entrevista:
Brasileiros – A Câmara dos Deputados aprovou a redução da maioridade penal em segundo turno em agosto. Como a senhora viu esta decisão?
Este é um projeto de lei que pelo seu número, 171, já se mostra estelionatário, que fere os direitos da criança e do adolescente. Quando a gente vê os deputados querendo aprovar uma lei como esta, a gente vê uma lei que é o prego da tampa do caixão da população pobre, negra e periférica. Isso não resta a menor dúvida. Quem está nas Fundações Casa, quem está nas prisões, no contexto geral, é a periferia. Os deputados não tratam de políticos sociais de forma verdadeira. Eles querem aprovar esta PL pra dar um pagamento de apoio eleitoral. Vemos isso quando a redução da maioridade é comemorada pela deputada Ota (Keiko Ota, PSB-SP). Aquela mulher perdeu um filho, e quem matou o filho dela foi um adulto e policial. Então você vê uma pessoa que teve sua vida tirada por um policial querendo a redução da maioridade penal. Com aprovação desta lei, os empresários vão lucrar mais. Isso é como um comércio com a vida do pobre e do preto. Isso nós não admitimos, vemos com muito cuidado, por que é a bancada da bala, que se juntou com a bancada evangélica, para não aprovar a PL 4471 (Projeto de Lei que altera o Código de Processo Penal e acaba com os chamados autos de resistência, espécie de “permissão para matar” para policiais militares). Estas bancadas também são contra o aborto. Então temos que ver além, é um contexto além da redução. E o Movimento Mães de Maio tem de ser ouvido por que o jovem precisa de oportunidade. O nosso jovem não tem oportunidade, não tem escola de qualidade, não tem educação. Ele precisa de cultura e investimento maciço em políticas sociais. Será que o que está faltando não é a medida socioeducativa que custa muito pro Estado, custa muito pro País? As mães até aceitam que os filhos passem pela Fundação, mas desde que as medidas socioeducativas sejam aplicadas. Nós fazemos um trabalho junto ao Degase também e vemos que é violento, que alguém se beneficia com essa situação. O jovem precisa de oportunidade, eu trabalhei desde pequena e, quando se tira a oportunidade do jovem de trabalhar, você o criminaliza. É isso que nós temos que pensar.
O jovem então entra para a criminalidade em função da falta de trabalho.
Sim. E não é trabalho escravo, é um trabalho estipulado pelo poder público. Se o poder público investisse em políticas sociais verdadeiras como a educação, isso poderia mudar. A gente tem uma sociedade violenta, a gente tem adultos sendo violentos com menores, servindo de exemplo, e colocam os jovens como protagonistas. Temos velhos de cabelo branco que ensinam os menores a roubar e têm foro privilegiado. Quem está dentro da Fundação Casa e do Degase não tem foro privilegiado, por isso vemos que a Justiça tem dois pesos e duas medidas. Porque a classe média alta, os filhos da burguesia, eles não roubam, eles desviam, eles não são traficantes, eles são portadores de drogas. Então há uma diferença, nossa Justiça usa uma venda nos olhos para não enxergar o peso da balança.
Para a senhora restringir a liberdade da pessoa, menor de idade ou não, resolve alguma coisa?
Eu já dei este exemplo e continuo dando. Quando teve uma audiência pública na Alesp para distribuir os presídios pelas cidades do Estado, muitos prefeitos não quiseram. Tava uma briga enorme nesta audiência, e eu me lembro que o prefeito de Aparecida do Norte dizia que lá a criminalidade era tão pouca que ele não queria mais cadeias. Então eu acho que não precisamos mais de prisões, e sim de mais escolas. Nós fomos a esta audiência e falamos que, se eles querem mais presídios e fechar escolas, deveriam pensar que a criança fica mais tempo na rua ou em casa do que em uma escola. Isso porque o poder público não dá escola integral para as crianças. Porque não colocam escolas integrais dentro das Fundações Casa e cursos profissionalizantes para os meninos saírem com algum emprego? Essas medidas socioeducativas não existem, é porrada, é humilhação, é incentivando o outro a espancar, a ser violento. E os guardas acham que podem espancar os meninos porque eles são infratores.
A senhora mencionou um caso no Degase.
O Movimento Mães de Maio tem presença em nível nacional, e temos mães no Rio de Janeiro que os filhos morreram dentro do Degase. Tem até uma que fizemos um enfrentamento muito grande, teve quatro exumações do corpo do menino. Ele foi morto por oito agentes que quebrou todo o corpo dele, mandíbula, introduziu pedaço de madeira dentro do ânus do menino. Então você vê, quem é violento? É o adolescente ou é o adulto? Enquanto a sociedade não enfiar na cabeça que temos uma polícia violenta, a gente só produz uma população violenta. E que sofre com essa violência do Estado, é a população pobre, preta e periférica. Não vai acabar a violência do País
abrindo mais Fundações Casa e reduzindo a maioridade penal, e sim desmilitarizando a polícia.
A violência policial aumentou este ano e os grupos de extermínio estão dando as caras de novo. É um reflexo do momento conservador que o Brasil vive?
Estamos vivendo em uma sociedade muito conservadora e que está contaminando a população periférica. Sabemos que dentro da periferia, por causa de um celular, uma bolsa, coisas materiais, pessoas pedem a redução da maioridade penal. Eles não entendem que esse menor infrator que pega um celular e pega uma bolsa também é vítima do sistema. Tem um sistema que é corrosivo, que é contra nós. Ele foi feito para nós. E por isso temos obrigação, como mãe, de derrubar este sistema. Temos que derrubar este sistema opressor porque ele é para nós. Eu perguntei para um desembargador de São Paulo, em um debate na Rádio Trianon, quantos menores burgueses infratores estavam dentro das fundações, e ele me respondeu: nenhum. Ai perguntei o porquê. Ele falou que os menores com mais dinheiro contratam advogados e estes acham brechas na lei. Não existe brecha na lei, existe corrupção dentro do Judiciário. A reforma do Judiciário também é necessária, precisa ser feita juntamente da desmilitarização.
Caso a medida seja aprovada, para a senhora como um menino de 16 anos vai se portar na prisão?
Se acontecer isso, chegou a hora da periferia reagir, principalmente os movimentos sociais. O dia que a favela e a periferia tomarem a cidade, vai ter um levante que vai gerar uma revolução. A burguesia acha que só ela tem direito ao espaço da cidade. É o que está acontecendo no Rio de Janeiro agora. Os meninos pobres estão atravessando a cidade para frequentar as praias dos ricos de Copacabana. Ser pobre e ser preto não é crime. A gente tem que barrar o racismo e a criminalização da pobreza no Brasil. O golpe da redução que estão querendo dar já foi dado na periferia. A ditadura é perfeita e perversa dentro da periferia. A ditadura nunca acabou, só para a burguesia. Quando os burgueses lutaram pela democracia, acharam que foram revolucionários, mas eles esqueceram de avisar para a polícia.
Como os meios de comunicação estão se portando em relação à redução?
Outra questão importante é a democratização da mídia. A mídia burguesa também engole meu imposto, eles são servidores que prestam um desserviço à sociedade. Esses mesmos meios que produziram a Ditadura Militar são os que querem a redução e que querem um Brasil para poucos, para a elite. A gente só vai alcançar a igualdade no dia em que essa mídia podre for democratizada. Ainda bem que veio a internet e que proporcionou as mídias alternativas, deu a oportunidade de criar os nossos próprios meios. A mídia alternativa não corta nossa fala, dá voz à todos. Os grandes meios estão perdendo, ultimamente só alimentam a classe média alta que também não quer que exista um País igual. Enquanto não democratizarmos a mídia, não vamos entender que ela também faz um papel de incentivar a violência na sociedade.
Existe um argumento de que o jovem mudou muito, e por isso a legislação seria ultrapassada. O jovem que mata hoje, mata pelos mesmo motivos do jovem de vinte anos atrás?
Penso que não é o jovem que mata, e sim o capitalismo que mata. O menino da periferia tem o direito de um tênis de um milhão, porque o capitalismo colocou ele na vitrine. Então ele tem direito, e não tem condições de comprar. Esse menor fica abandonado, não existe uma escola para educar, e ele quer andar na moda. O que ele faz para andar na moda? Vai roubar para comprar aquele tênis, vai roubar para comprar o que ele quiser. Então nós não vemos esse aspecto do menor, que ele tem o direito de querer o tênis de um milhão. Não vejo o menor como violento, violento é o Estado. É o adulto violando o direito daquele menor.
O que mais falta para o jovem brasileiro atualmente?
O Brasil está devendo uma reparação para o jovem negro. Esta reparação não foi feita. E quando nós vemos que isso não foi feito, a escravatura ainda continua por que ela foi assinada de lápis. Nós precisamos que a nossa carta de alforria seja assinada de caneta, que nenhum de nossos governantes teve coragem. O Brasil deve para a população, esta reparação tem que acontecer. O violento é o nosso País, que não reparou o que fizeram com os antepassados desta juventude periférica. Cada vez mais jogamos o negro na periferia, e falamos que a periferia é a senzala, os presídios e as Fundações Casa são os navios negreiros e os capitães do mato estão aí atrás dos homens fardados.
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