“Quero ser lembrado como o amigo do povo”

Dom Paulo Evaristo Arns na Conferencia Episcopal de Puebla no México, onde progressistas e conservadores da América se encontraram em 1979 – Foto: Hélio Campos Mello
Dom Paulo Evaristo Arns ao retornar da Conferência Episcopal de Puebla no México, onde progressistas e conservadores da América se encontraram em 1979 – Foto: Hélio Campos Mello

O líder estudantil Alexandre Vannucchi foi morto por agentes do DOI-Codi de São Paulo em 17 de março de 1973. Cursava o quarto ano de Geologia na Universidade de São Paulo e militava na Ação Libertadora Nacional (ALN). Seu corpo foi jogado na rua João Boemer, no Brás, em São Paulo, em uma tentativa de forjar o assassinato e dizer que o estudante se jogara propositadamente na frente de um caminhão.

Foi dom Paulo Evaristo Arns que contestou publicamente a versão do governo. Em 30 de março daquele ano, o cardeal celebrou uma missa histórica na Catedral da Sé para mais de 3 mil pessoas. Foi a primeira vez que a igreja católica não reconheceu uma versão de suicídio na ditadura. Depois disso, o nível de tortura diminuiu nos presídios paulistas. “Se eu estou vivo hoje, é graças à atitude corajosa de dom Paulo Evaristo”, lembra Adriano Diogo, militante dos direitos humanos e ex-deputado estadual. “Naquela sexta-feira, embora não soubéssemos o motivo, ouvimos o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, e toda a Operação Bandeirante, enlouquecida, bradejar contra dom Paulo”, conta.   

Era o tempo mais duro da ditadura civil-militar no Brasil. Entre 1969 e 1979 foram anos sangrentos no País. Pessoas desapareciam e eram presas, torturadas e mortas. Tudo a mando do Estado, sob tutela dos presidentes Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel. Foi nessa condição que Dom Paulo Evaristo Arns, nomeado arcebispo de São Paulo, mudou a vida de muita gente. Suas visitas aos porões da ditadura, em missão humanitária e luta intransigente pelos direitos humanos, tornaram-se sua grande marca. 

“Eu conheci Dom Paulo quando estava preso no presídio do Hipódromo”, revela Adriano. Ele conta que dom Paulo entrou em sua cela, acompanhado de Hélio Bicudo, e escondeu documentos sobre a tortura sofrida pelos presos políticos debaixo de sua roupa. Clandestinamente e em cartas sigilosas, dom Paulo contou à igreja, ao mundo e às entidades de direitos humanos internacionais o que estava acontecendo no Brasil e na América Latina. Adriano ficou 90 dias encarcerado em uma cela solitária para que delatasse os colegas militantes Alexandre Vannucchi e Gerardo Magela.

Dois anos depois do assassinato de Vannucchi, os mesmos ditadores mataram o jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog, depois de o encapuzar, amarrar a uma cadeira, sufocar com amoníaco e submeter a espancamento e choques elétricos, rotina do manual ali praticado com centenas de presos políticos nos centros de tortura da ditadura, financiados em grande parte por empresários que patrocinavam ações repressivas e de violação dos direitos humanos, como a Operação Bandeirante, que se tornou DOI-Codi em 1970, legalizada. Mais uma vez, dom Paulo não aceitou a versão do governo de que Vlado havia se suicidado. 

Dom Paulo se reuniu, em 31 de outubro de 1975, com o rabino Henri Sobel e com o reverendo James Wright e celebrou um grande culto ecumênico na Catedral da Sé, em memória do jornalista e afirmando sua tortura e assassinato. A catedral estava repleta, escadarias e parte da praça tomadas. No altar estavam dom Paulo, dom Helder Câmara, os rabinos Henry Sobel e Marcelo Rittner, o cantor Paulo Novak, da Congregação Israelita e mais 20 sacerdotes católicos. “Esta Casa é de Deus e de todos os homens que aceitam o caminho da Justiça e da Verdade. Purifiquemos o nosso coração de todo o ódio“, iniciou o culto dom Paulo.“Ninguém toca impunemente no homem, que nasceu do coração de Deus, para ser fonte de amor em favor dos demais homens. Desde as primeiras páginas da Bíblia Sagrada até a última, Deus faz questão de comunicar constantemente aos homens que é maldito quem mancha suas māos com o sangue de seu irmão. Nem as feras do Apocalipse hão de cantar vitórias diante de um Deus que confiou aos homens sua própria obra de amor. A liberdade — repito — a liberdade humana nos foi confiada como tarefa fundamental para preservarmos, todos juntos, a vida do nosso irmão, pela qual somos responsáveis, tanto individual quanto coletivamente. Não matarás. Quem matar, se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus!”.

Cerimônia inter-religiosa em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, Catedral da Sé, 31 de outubro de 1975. Foto: Reprodução
Cerimônia ecumênica em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, Catedral da Sé, 31 de outubro de 1975. Foto: Reprodução


Pela primeira vez, um cardeal condenava os torturadores à maldição divina. No final, dom Paulo pedia justiça e paz: “neste momento, o Deus da esperança nos conclama para a solidariedade e para a luta pacífica, mas persistente e corajosa, em favor de uma geração que terá como símbolo os filhos de Vladimir Herzog, sua esposa e sua māe.”

Em outubro de 1979, o metalúrgico Santo Dias da Silva, líder sindical, foi morto na Capela do Socorro. Na companhia de dom Angélico Bernardino, dom Paulo foi até o Instituto Médico Legal e gritou: “vocês são uns covardes, vocês atiraram pelas costas!”. Colocou o dedo no buraco da bala e rezou um Pai Nosso. 

Dom Paulo, fundou a Comissão Justiça e Paz, que recebeu também estrangeiros que fugiam de ditaduras em outros países. “Fiquei desaparecido na Argentina por 15 dias e fugi para o Brasil”, conta o sociólogo Andrés Thompson. Sequestrado e torturado com a mulher grávida em seu país, chegou a São Paulo sem apoio de ninguém. Aos 22 anos, descobriu que a igreja poderia ajudar. Desconfiado e profundamente anti religioso – mas sem saída – procurou a comissão. Foi recebido por Margarida Genevois, que o encaminhou a dom Paulo. “Queridos, esse pesadelo acabou”, disse o então arcebispo de São Paulo. Ele pegou o telefone e organizou o pré-natal e o parto de Rebeca, filha do casal de argentinos. Depois, com ajuda internacional, arranjou documentos e os mandou para uma comunidade na Holanda. “Sem dinheiro, sem futuro, com medo, encontramos um aconchego. Senti que estávamos sendo cuidados por alguém”, lembra Andrés.  

Ações como essa renderam ao cardeal 46 fichas no DOPS, que considerava seu trabalho “subversivo”. 

Mas o regime de exceção não parou dom Paulo. Em 1983, com o pastor Jaime Wright, deu início ao projeto “Brasil: nunca mais”, que reuniu documentos e relatos da repressão política no País. São quase um milhão de páginas de processos e relatórios sobre as violações de direitos humanos no período da ditadura. 

Depois, no período democrático, seguiu cuidando dos mais vulneráveis. Esteve na Casa de Detenção quando houve o massacre do Carandiru e denunciou a matança internacionalmente. Acolheu a população de rua, ofereceu ajuda aos mais pobres. Achava que esse era o seu papel. 

Dom Paulo pregava o amor perseverante e corajoso. E dizia que “a democracia plena só pode chegar dentro do espírito da solidariedade”. Em seu brasão episcopal levava o lema “de esperança em esperança”. Amava São Paulo, mesmo tendo nascido na pequena Forquilhinha, em Santa Catarina. “Se fosse seguir os impulsos do meu coração, eu diria que nunca iria separar-me de São Paulo. A cidade transformou-se para mim no sentido da vida.” São Paulo era sua vocação.  

“Dom Paulo foi o maior líder responsável para que os direitos humanos fizessem parte da transição para o governo civil. Ele foi capaz, como poucos, de lutar pelos direitos humanos na ditadura”, relata o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, que esteve próximo a dom Paulo em diversos episódios. “Com que coragem agiu na ditadura e com que consistência trabalhou nos governos democráticos. Todos que tentamos seguir sua luta fomos seus pequenos aprendizes diante do imenso exemplo de sua total dedicação à defesa dos direitos. Tudo envolto em gentileza, bom humor e permanente esperança. Neste momento deprimente da vida pública brasileira não podemos contar com ele. Isso aumenta nossa responsabilidade.”

Dom Paulo Evaristo Arns terminou sua missão um dia depois do aniversário de 48 anos do Ato Institucional Número 5, que levou tantas vidas e torturou tanta gente. Violações seguem acontecendo com seu povo, principalmente com os pobres, os negros e os moradores das periferias. 
 
Em uma entrevista ao jornal O São Paulo, em dezembro de 1997, dom Paulo declarou: “Eu gostaria de ser lembrado como amigo do povo. Porque eu defendi os direitos humanos de todo o povo, sem olhar religião, sem olhar ideologia, sem olhar para as capacidades ou possibilidades das pessoas que eram perseguidas, mas sim para que todas elas tivesses seus direitos garantidos e a dignidade humana revelasse o amor divino.”

Que seja celebrado o seu desejo. 

Conteúdo!Brasileiros: Bendita parceria

*Colaborou Laíssa Barros

**Grande parte dessas informações está contida no livro “Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns – pastor das periferias, dos pobres e da justiça”, organizado por Professor Waldir e Padre Ticão

***Agradecimento ao professor Fernando Altemeyer Junior, que nos ensina sobre a missão de Dom Paulo Evaristo Arns até hoje 


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