Há oito anos, o rapper carioca MV Bill e o seu amigo, Celso Athayde, que já presidia a Central Única das Favelas (Cufa), encerravam o documentário Falcão – Meninos do Tráfico com um breve discurso, de certa forma, otimista, dizendo que era possível mudar o panorama exibido no filme se os nossos políticos estivessem dispostos. Nos 55 minutos anteriores, imagens gravadas toscamente com diversos garotos garimpados pelo tráfico de drogas em favelas do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte mostravam que o crime atinge menores de idade muito cedo e, pior do que isso, constrói na mente deles imagens totalmente deturpadas da sociedade.
Quase dez anos depois, a situação piorou. É o que afirma o companheiro de Bill naquela produção, Celso Athayde, à nossa série sobre a redução da maioridade penal. “Aquele pivete agora esfaqueia para tomar uma bicicleta, aí ele é amarrado em um poste e linchado, depois filmam e colocam no Facebook. E lá surgem muitos comentários para que ele seja morto”, conta ele, dando mais um argumento para a culpa da própria sociedade na existência de adolescentes infratores, como já fora notado pelos sociólogos Aldo Fornazieri, da Escola de Sociologia de São Paulo, e Rosana Schwartz, do Mackenzie.
À seguir, trechos da entrevista de Athayde à Brasileiros e, em seguida, o documentário Falcão – Meninos do Tráfico na íntegra:
Brasileiros – A proposta atual em debate na Câmara prevê a punição de menores que cometerem apenas crimes hediondos, além do cumprimento da pena em prisões parecidas com penitenciárias, mas separadas dos presos comuns. É uma saída viável ou produz o mesmo efeito da redução comum?
Celso Athayde – Produz um efeito pior. Chegamos à cifra de 600 mil presos, a maior parte deles primários, “aviõezinhos” ou que praticaram crimes de pequena gravidade. Recrudescer as penas com a ideia de que isso irá intimidar a prática do crime é como jogar gasolina no fogo. O jovem que está no crime hediondo já vem de uma trajetória onde o próprio crime hediondo se tornou seu troféu, sua marca registrada na hierarquia desse enredo trágico. Logo, não reduzirá a violência: essa pena será uma medalha ainda mais trágica nesse festival de horrores. Esses jovens que atentam contra a vida (menos de 2%) já não têm mais vida. Logo, se não temem perder suas próprias vidas, imagina as nossas.
Nas eleições do ano passado, você cobrou, no caso, do governo do Estado do Rio de Janeiro, um dispositivo maior de participação dos cidadãos nas decisões políticas. É uma reclamação social antiga. Justamente essa ausência de integração faz com que o comprometimento social da maior parte das pessoas seja insignificante?
A representação social precisa se desaparelhar dos partidos políticos. Precisamos construir outras coletividades capazes de pautar as políticas sociais e públicas, para além da conveniência de acordos partidários momentâneos. Isso faz parte do jogo e é saudável para a democracia. Os problemas da democracia não são melhorados em outro sistema. Eles só se resolvem com mais democracia.
A Cufa atua em maior intensidade nas favelas do Rio de Janeiro, onde a presença das UPPs geram opiniões distintas: ao mesmo tempo em que “pacificam”, são protagonistas de caso como o do Amarildo. A postura da polícia colabora até que ponto para o afastamento desse tipo de população com a sociedade como um todo?
Essa população não pode ser mais tratada como algo à parte da sociedade. Uma reflexão complexa do caso Amarildo é que, mesmo sendo morto por agentes do Estado, só foi possível levar adiante alguma ação – mesmo com todas as dificuldades – porque existia o mínimo de legalidade e porque eram agentes do Estado. O crime não substitui o Estado em lugar em algum. Se alguns querem romantizar o crime, fiquem à vontade, mas para nós isso não dá. Por outro lado, a criação de um sistema único de segurança pública, tendo o Sistema Único de Saúde (SUS) como espelho – com controle social, financiamento específico e participação democrática – poderia nos tirar desse atoleiro. Do contrário, toda e qualquer ação em separado gera mais caos. Veja o exemplo da lei que despenalizou o uso de maconha: ela, por outro lado, jogou centenas de jovens nas prisões como criminosos hediondos, sendo que, na prática, são meros “aviõezinhos”. Por quê? Porque quem avalia se a quantidade de droga é para tráfico ou para uso pessoa é o juiz, o delegado e o policial. Estes agentes ainda julgam por critérios de origem social, classe e cor. O reflexo está aí: o sistema estrangulado e jovens entrando cada vez mais para o crime.
Como o debate sobre a maioridade penal está se dando onde supostamente se opera o maior grau de meninos nessa situação, ou seja, nas favelas?
Esse debate não ocorre com a participação de menores. É um debate à parte, totalmente distante da maioria dos jovens. Se duvidar, a maioria dos adolescentes das próprias favelas é a favor da redução da maioridade.
Em 2007, o Brasil ficou chocado com o documentário que você ajudou a realizar com MV Bill, Falcão – Meninos do Tráfico. Oito anos depois, a situação exposta no filme teve alguma alteração?
Piorou! Aquele pivete agora esfaqueia para tomar uma bicicleta, aí ele é amarrado em um poste e linchado, depois filmam e colocam no Facebook. E lá surgem muitos comentários para que ele seja morto. Está acontecendo o contrário do que falam sobre esses jovens que, repito, cometem quase 2% dos crimes hediondos: 36% dos homicídios no Brasil atingem a mesma camada de jovens. É como diz a letra do MV Bill: “A sociedade me criou e agora manda me matar”.
A principal argumentação contrária à manter a idade penal em 18 anos é que pessoas de 16 anos já sabem o que fazem. Nas favelas, especialmente, o que esses menores sabem sobre o que fazer? Eles têm noção clara do que esses críticos chamam de “distinguir o certo do errado”?
A maioria dos moleques do crime não tem nem título de eleitor. E se a gente se pautar pela responsabilidade eleitoral, olhemos o Congresso atual, suas decisões e sua credibilidade na sociedade. Se isso é ter responsabilidade, não sei o que será com a falta dela.
Alguns entrevistados da nossa série argumentam que, como a maioria dos adolescentes internados em instituições socioeducativas se envolveu com o tráfico, seria preciso discutir a criminalização das drogas. Como você vê esse debate?
Precisamos discutir os royalties da favela, pois o discurso das autoridades e da mídia é que esse mesmo tráfico mata, escraviza e destrói milhares de vidas de jovens. Não é justo que, ao legalizar a droga ou regulamentar seu uso, venda e consumo, o Estado recolha impostos, os artistas ganhem seus cachês com propagandas, o mercado com suas vendas, e a favela, que viveu o doce e, principalmente, o amargo desse processo, fique a ver navios, colhendo corpos e chorando nos velórios. Já vemos essa experiência acontecendo com o álcool e o tabaco.
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