Para Maria Fátima Olivier Sudbrack, presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas, a redução da maioridade penal é uma afronta à sociedade brasileira, que já definiu políticas da infância e adolescência baseadas na doutrina da proteção integral, como rezam as políticas internacionais das quais o País é signatário. “Como podemos imaginar que a redução da maioridade penal possa ser uma estratégia efetiva de segurança pública? É simplesmente inaceitável. Precisamos avaliar o que está por trás disso tudo e denunciar a criminalização de nossas crianças e juventude pela exploração do tráfico de drogas”, diz a psicóloga e educadora.
Leia o especial da Brasileiros sobre redução da maioridade penal
Maria Fátima aponta para a importância do sentimento de pertencimento por parte da juventude para a garantia de uma identidade cidadã e o consequente respeito às leis. Ela também destaca a complexidade da relação dos jovens com as drogas, que não deve ser resumida à ideia de que “drogas geram violência”. Para ela, além dos efeitos da droga em si, deve ser analisado o contexto de venda, compra e consumo: “O grande equívoco que vivemos é o da punição pura e simplesmente de adolescentes e jovens envolvidos com a violência do contexto e com a cultura da violência que faz parte da comercialização das drogas ilícitas ( especialmente maconha e crack), gerando o que os sociólogos denunciam como o ‘encarceramento da pobreza’. A violência não é dos jovens, é do sistema de controle policial e judicial, que priva de liberdade pessoas exploradas pelo negócio mais lucrativo do mundo: o narcotráfico”.
Confira a entrevista na íntegra:
Revista Brasileiros – Por que a senhora é contra a redução da maioridade penal?
Maria Fátima Olivier Sudbrack – Sou contra a redução da maioridade penal por várias razões, dentre as quais destaco o direito do ser humano ter um tempo para ser educado, desenvolver-se e adquirir autonomia, em condições de acompanhamento e proteção pela família, escola e sociedade como um todo. Acredito que a autonomia é resultado de diversas dependências e, portanto, para tornar-se adulto responsável é preciso aprender e introjetar as leis como protetoras, porque você faz parte daquela sociedade. O sentimento de pertencimento garante sua identidade cidadã, sendo fundamental para a condição de cidadão. Pertencer é fundamental para sentir-se respeitado e respeitar a lei de forma madura. Além desta dimensão de compreensão psicológica, destaco que o PL 171-93 é uma verdadeira afronta a uma conquista importante da sociedade brasileira, que já definiu políticas da infância e adolescência baseadas na doutrina da proteção integral, como rezam as políticas internacionais das quais o Brasil é signatário e que garantem a mínima condição de cidadania face a uma realidade de tantas desigualdades sociais que fazem parte da realidade da infância, da juventude e de um grande contingente de famílias brasileiras que devem receber apoio do Estado para educar seus filhos com dignidade. Isto inclui a responsabilização pelos atos infracionais, através de medidas socioeducativas como previsto no ECA. O que se passa que não se consegue implementar o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), muito bem posicionado na política de direitos humanos? Até quando vamos negar esta grande dificuldade posta na política brasileira da infância e juventude?
Qual o papel das drogas na questão da criminalidade de crianças e adolescentes?
As drogas apresentam uma função paradoxal. Ao mesmo tempo em que estão agravando as condições de vulnerabilização de muitas crianças e jovens brasileiros, podem representar uma busca de solução face às adversidades sofridas. O tema exige análise minuciosa pois compreende muitas dimensões, devendo evitar-se o senso comum de que ” droga gera violência”, numa perspectiva linear e redutora da questão. Por exemplo, usar drogas pode ser extremamente “funcional” para quem vive na rua – passa a ser uma estratégia de sobrevivência. Ao mesmo tempo, gerada a dependência, não será possível deixar a droga sem deixar a rua. Numa visão sistêmica, venho estudando as diferentes dependências que constituem fator de risco para quem usa drogas, além da dependência dos efeitos, propriamente dita. São as dependências de contexto: do provedor, do distribuidor, dos pares de consumo e das crenças. O grande equívoco que vivemos está sendo o da punição pura e simplesmente de adolescentes e jovens envolvidos com a violência do contexto e com a cultura da violência que faz parte da comercialização das drogas ilícitas ( especialmente maconha e crack), gerando o que os sociólogos vem denunciando como o “encarceramento da pobreza”. A violência não é dos jovens, é do sistema de controle policial e judicial, que priva de liberdade pessoas exploradas pelo negócio mais lucrativo do mundo: o narcotráfico. A criminalização já está posta pelas condições sofríveis de uma camada da população brasileira excluída das escolas, da profissionalização e, portanto, de condições de uma inserção produtiva na sociedade. Cabe questionar: por que aconteceu este envolvimento impressionante dos nossos jovens com a distribuição de drogas ilícitas? Como deixamos isto acontecer durante tantos anos? Onde estão as políticas sociais para a juventude de periferia que, tão facilmente, o tráfico alicia? E que morrem como animais, sem sequer contabilizar… A criminalização já existe e está sendo muito cruel. Vamos reforçar e acelerar ainda mais este processo? Em nome de quê? Quem tem este direito? Confesso que como pesquisadora, educadora e, em especial como cidadã brasileira, estou realmente indignada face a tal cenário de violências do próprio Estado. Como podemos imaginar que a redução da maioridade penal possa ser uma estratégia efetiva de segurança pública? É simplesmente inaceitável. Precisamos avaliar o que está por trás disso tudo e denunciar a criminalização de nossas crianças e juventude pela exploração do tráfico de drogas. Como política pública, o envolvimento de crianças e adolescentes no tráfico de drogas se trata de exploração de mão de obra infantil, que exige medidas punitivas aos responsáveis por este aliciamento. Uma dimensão fundamental é reconhecer que encontraram neste contexto não apenas possibilidades (arriscadíssimas) de sobrevivência material, mas de inserção, reconhecimento e até de pertencimento . Para mim, como psicóloga, é a dimensão mais forte e que revela que precisamos de uma verdadeira assistência, como propõe o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), incluindo dimensões materiais, afetivas e de inclusão cidadã, resgatando vínculos familiares e sociais.
A senhora defende a legalização das drogas? O que fazer para evitar que mais jovens sejam presos por causa do uso e comercialização de drogas?
Minha postura é claramente antiproibicionista. Cabe esclarecer o que assumo quando assim me apresento. Como profissional de saúde e atuante nas políticas sobre drogas, sempre defendi que a criminalização de usuários de drogas de nada serve, nem para eles e nem para a sociedade. Além do mais, face aos sujeitos que adoecem pelo uso prejudicial de drogas licitas ou ilícitas, nosso maior desafio é libertar as pessoas das “prisões de dentro”. Neste sentido, contrapomos as dependências com a liberdade e não com a abstinência. Sou, portanto, contra a criminalização de usuários de drogas. Isto é diferente de ser a favor da legalização das drogas. Penso que estamos em um momento de debate sobre quais seriam os mecanismos de controle efetivos na sociedade brasileira para que o Estado e a população como um todo consigam se conscientizar dos riscos do uso de drogas, sem reduzir a questão a políticas de criminalização dos usuários, que já demonstram seu fracasso. Sabemos que a política de guerra às drogas fracassou . Isto não significa que não tenhamos muitas lutas pela frente. A principal delas é de construir mecanismos de controle sanitário e educativo.
O que a senhora acha da legislação brasileira no que diz respeito ao uso e comercialização de drogas?
Quanto a mudanças na legislação, em princípio, para adolescentes, seguindo o ECA, o encaminhamento seria para medida protetiva e tratamento em serviços de saúde para o adolescente e seus familiares.
Cabe à Vara de Infância e Juventude fiscalizar e exigir equipamentos para estes atendimentos na rede. Vivemos um momento político de claro embate entre Executivo e Legislativo, que configura um cenário de jogo acirrado de forças e de disputa de poder e de popularidade. Infelizmente, este é o contexto do debate que está impedindo uma reflexão verdadeira do que poderíamos fazer para avançar. Precisamos aprofundar uma crítica à politica vigente de implementação do SINASE. Este é o tema a ser debatido, no meu entender. Por exemplo, deveríamos debater sobre a a qualificação de educadores sociais para que a própria internação de menores faça seu papel de cuidado especializado para a reinserção social destes que clamam por ajuda através deste ato de drogar-se.
A legislação precisa ser aperfeiçoada, mas não se trata apenas de mudar a lei. Os dispositivos necessários de politicas políticas públicas, como novas propostas de intervenção psicossocial e educativas precisam também ser disponibilizados. Na verdade, estamos vivendo um descrédito de aspectos da lei maior, ECA, que ainda não foram implementadas pelo SINASE. Desacreditamos de algo que ainda nem aconteceu ou não mudou para que a lei fosse implementada. E isto cabe ao Executivo. Não consigo vislumbrar uma melhor legislação do que o ECA e o SINASE, sendo este último ainda incompleto em diversos aspectos, destacando-se o da formação e identidade dos educadores sociais.
Quanto à legislação sobre drogas para adultos, considero que a nova lei sobre drogas avançou quando já não permite a privação de liberdade apenas por uso de drogas, embora ainda considerada infração. Novamente, o problema não é necessariamente e apenas de legislação, mas da execução da lei, através de novas politicas públicas atreladas, em especial do judiciário que ainda não capacitou policiais para atuarem de outra forma a não ser prendendo usuários para informar sobre o tráfico. Agrava ainda mais a condição punitiva dos usuários a dificuldade de distinguir-se entre usuários e traficantes, resultante de uma considerável imbricação dos jovens e de muitas famílias no comércio de drogas ilícitas como meio de subsistência e, por vezes, como único meio de acesso à própria droga, no caso dos jovens sem poder de compra. Ainda é muito presente na sociedade e em especial no segmento policial e da justiça o estigma que relaciona o usuário de drogas à delinquência e à violência e, assim , justifica atos arbitrários de repressão nem sempre dentro da lei. Por outro lado, uma vez entrando no circuito da Justiça, adquirem este lugar marcado de infratores e, infelizmente, nos próprios serviços de saúde, ainda são vistos como “bandidos”.
Portanto, a implementação de novos programas de prevenção e também o avanço do cuidado amplo em saúde e assistência dependem da mudança de mentalidade, ou seja, das representações sociais que temos e que marcam nossa relação com as pessoas usuárias de drogas.
A Abramd escreveu e entregou ao Congresso um manifesto contra a redução da maioridade penal. O que fazer para convencer a população brasileira de que a medida é um retrocesso?
A estratégia de contribuição da ABRAMD foi de sensibilização dos legisladores. Estamos fazendo um corpo-a-corpo para ver se conseguimos argumentar cientificamente para mudar os votos favoráveis à PEC 171-93. A conscientização da opinião pública merece outras ações que estão sendo realizadas pela Frente Nacional Contra a Redução da Maioridade Penal, em espaços públicos, escolas, etc. A luta pela segurança pública é legítima e é uma demanda ao governo de toda a sociedade brasileira, assolada pela violência vivida por cada um de nós, nas ruas das grandes e das pequenas cidades brasileiras. No entanto, há um jogo de manipulações, num discurso maquiavélico que confunde e distorce tudo.
Os sociólogos nos ensinam que não podemos ver a sociedade como um grupo hegemônico e tampouco seria assim para a sociedade brasileira, formada por tantas diversidades econômicas, culturais, religiosas, entre outros. Entendo que a influência da lei nos costumes é sistêmica, ou seja, ao mesmo tempo que resulta da mudança de costumes, também constrói novas mentalidades. E aqui, voltamos ao ECA, lei muito avançada que ainda não teve a legitimação de toda a sociedade, quando se clama pela prisão destes menores como sendo o motivo da violência que nos assola. Por sua vez, estes segmentos da sociedade tem seus representantes no Parlamento e estão se mostrando muito poderosos, em seus anseios de popularidade.
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