A psicanalista Melanie Klein. Foto: Reprodução
A psicanalista Melanie Klein. Foto: Reprodução

Melanie Klein (1882-1960) foi uma psicanalista que se dedicou de forma sistemática a dois afetos hoje um pouco esquecidos pelos psicanalistas: inveja e  culpa. Uma de suas intuições clínicas mais simples e mais brilhantes diz respeito ao nexo que ela observou entre ambos. Sendo a inveja, originalmente, associada com o desejo de privar o outro daquilo que ele tem, e sendo este impulso retido, desde os outros e gradualmente por nós mesmos, sobra uma espécie de resíduo desta experiência que liga a inveja à culpa. Ou seja, em vez de privar o outro preciso transformar meu afeto de inveja no desejo de possuir um equivalente do que suponho que o outro tenha. Se não trabalho, subjetiva e objetivamente para isso, a inveja passará a ser retinta de culpa. Culpa pelo que teríamos sentido. Pela infantilidade, destrutividade e inadequação de nossos afetos passados. Há uma culpa envergonhada, que acompanha a simbolização da inveja, mas o mais frequente, neste percurso é que a culpa seja enviada aos outros, dando origem ao ódio por aquele que no começo eu apenas invejei. 

Lembrei da “divina açougueira”, como Lacan carinhosamente chamava Melanie Klein, acompanhando  a sequência de chacinas e massacres trazidas pelo novo ano de 2017. É verdade que tais barbaridades estão sempre acontecendo e que em certas épocas elas ganham visibilidade adicional. Também é possível que certos momentos sejam mais propícios ao isolamento, introspecção e atormentamento que precede, quase sempre, as grandes catástrofes subjetivas. Há sempre um período de incubação, cercado de avisos e ameaças, que em geral não encontram ninguém para ouvir, antes que alguém passe ao ato. Quando isso acontece, geralmente, o sujeito está sozinho demais, por isso compramos tão fácil a imagem do lobo solitário ou do caso isolado. Mas a situação inversa é igualmente letal: o sujeito está diluído em um grupo ou massa, portanto, sozinho de menos.  Em concentrado em si mesmo ou diluído na massa não encontramos a condição fundamental para a ocorrência tanto da gratidão quanto da reparação, ou seja, a experiência compartilhada.

Tanto a loucura irreparável do ex-combatente do Afeganistão, que ouve vozes que o incitam a assistir vídeos do Estado Islâmico, quanto a loucura ingrata do marido rejeitado, que resolve acertar as contas com a ex-mulher e sua família, ocorrem em torno de algo que não pode ser compartilhado: ideias terroristas no primeiro caso, filho no segundo caso. Ambos os atos tem uma espécie de desencadeante situacional ligado a grupos: a exclusão da família, a exclusão do exército. Ambos acontecem em lugares festivos: o jantar e o aeroporto de fim de ano. Loucuras situacionais, como as se observa em prisões, condomínios e grupos são incrementadas por afetos perigosos, que uma vez reduzidos e subqualificados nos conferem superpoderes.  

Em grupo ou em isolamento, não conseguimos as melhores condições para trabalhar, objetiva e subjetivamente, a passagem da inveja à gratidão e da culpa à reparação. Em grupo a covardia e irrelevância individual são transformadas em coragem coletiva.  Coragem artificial, como a dos dois rapazes que matam um ambulante que tenta proteger duas travestis. Coragem que fica esperando a ocasião propícia, como uma festa ou uma bebedeira, para que a inveja seja vertida em ódio.

O quarto tipo de loucura reúne as três figuras anteriores, mas lhes dá um semblante diferenciado é a normalopatia, nossa loucura normalizante e normalizadora, que nos faz crer que só as vozes que nós escutamos são “reais”, que nos cria a certeza de que a inveja e a culpa são a essência da justiça e que nos torna convictos de que o grupo nos protege de nossas próprias inconsequências. Afinal é o grupo quem diz quem você é: sua família, sua raça, seu credo.

O litoral entre patologias individuais, suas ocasiões de desencadeamento e sua epidemiologia coletiva jamais será bem delimitado. Portanto, é falsa questão saber se estamos diante de uma epidemia de loucura, se, não importa o diagnóstico, falta lei e ordem; ou se é simplesmente a “minha loucura coletiva” deve ser aceita como nova normalidade, com toda a sua pós-verdade descarada.

Prefiro uma hipótese mais simples, ainda que mais aproximativa. Existem afetos políticos. Tais afetos são determinados por nossas narrativas de sofrimento. Nossas narrativas de sofrimento expandem-se em grupos, por identificação, mas também por transmissão “viral” direta, um a um, de mãe para filho, de pai para sobrinho, de ex-marido para amante. O afeto político dominante é o que Lacan chama de imaginário, ou seja, uma espécie de paisagem produzida às nossas expensas, mas interpretada como se fosse encomendada por e para nós. Por exemplo, sabemos muito bem que o clima é determinado pela posição dos planetas em relação ao sol e ao eixo da terra. Portanto, se faz frio ou calor isso nada tem que ver com você. Por outro lado quando faz frio e chove tudo fica mais triste e lento, assim como associamos a primavera com uma mensagem de alegria vinda do Outro.

Ao contrário do clima que é produzido por causas naturais o “clima político” é altamente dependente de como sancionamos ou defletimos narrativas de sofrimento e seus afetos correlativos. Isso ajudaria a entender melhor porque os mesmos crimes e as mesmas barbaridades, acontecidas desde sempre, ora entram em série e ganham visibilidade, vale dizer reconhecimento, ao passo que outros crimes, continuam a prosperar em silêncio complacente. Ao contrário do clima do qual podemos apenas nos defender por meio de aparatos protetivos, no caso dos afetos políticos podemos agir ativamente sobre eles, ainda que estes sejam estruturalmente induzidos.

Aqui volto à intuição fundamental de Melanie Klein. Para que isso possa acontece, subjetiva e objetivamente, é preciso condições que produzam experiências de compartilhamento. Tanto a gratidão quanto a reparação presumem que os envolvidos estejam em um campo de relações ou um sistema de trocas nos quais além do que é meu e do que é seu, exista uma zona indeterminada que vai além do que é nosso (o nosso grupo, por exemplo).  A indeterminação da propriedade, vale também para os afetos e suas causas. Sem esta experiência de compartilhamento, cujo modelo central é a troca pela palavra, torna-se difícil fazer com que a desigualdade não evolua para o sentimento de injustiça e que a injustiça torne-se justiciamento vingativo.

 A saída não é colocar todos nos divã, ainda que isso possa diminuir sensivelmente a periculosidade de nossos afetos, mas investir nas condições para que experiências compartilhadas aconteçam. A gratidão é um acontecimento contingente. Ninguém tem direito a ela. Ninguém pode impô-la ao outro. Assim também reparar um erro cometido é muito diferente de penalizar seu executor. Reparar é reconstruir a experiência, e nisso ela se torna compartilhada. Experiências com justiça restaurativa ou reparativa, ora em curso, tem mostrado a força desta contingência. Muitos preferem encarar a prisão a pedir desculpas e de fato escutar os efeitos de seus atos sobre a vítima. 

Não seria uma surpresa se descobríssemos uma associação entre a ocorrência e visibilidade de certos crimes, como os massacres prisionais e familiares, que tomaram conta do país e a ascensão de uma cultura que reconhece cada vez menos a diferença social como uma injustiça a ser reparada, e repudia cada vez mais o destino compartilhado em prol da criação segmentar de culpados.

A cultura da denúncia é o casamento kleiniano perfeito entre aquele que ergue o dedo para atacar o outro, sentindo-se assim um pouco mais elevado e puro, ao mesmo tempo em que acasala sua inveja com o sentimento de indiferença e irrelevância com relação a tudo o que é comum, público ou coletivo. Quando tudo que existe é propriedade de alguém, aquilo que me falta só pode ter sido apropriado por outro. Por isso sinto autorizado a perseguir e atacar o outro para reaver a injustiça cometida, com minhas próprias e proprietárias mãos.


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