O jogo e a garrafa

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A política não pode morrer. Se ela morre, morre também a civilização e fica a barbárie. Foto: FMagalhães

Lembro-me, desde criança, que os telejornais fechavam suas edições diárias com a cena, em grande angular, do pregão da Bolsa de Valores e Mercadorias. Uma gritaria danada, gestos erráticos dos operadores, olhares ansiosos, enquanto fios de telefones se enroscavam uns nos outros. Muitos números e gráficos. Não entendia do que se tratava. Era um jogo, e os adultos ganhavam dinheiro, explicavam-me.

Décadas depois continuo não entendendo aquela bizarra mistura de War com Banco Imobiliário. Brincar de Palavras Cruzadas sempre foi minha preferência, tenho gosto pela poesia. 

Desprezo, dos jornais, os cadernos de economia, classificados e esportes. Fico com os de cultura, cidades e política, que me ajudam a construir algum entendimento sobre a vida como ela está.  As notícias, tal qual cartas do baralho, esparramadas à mesa. O morto, de vários naipes e números desconexos, robusto, merece ser comprado. 

Buraco eu jogava quando fazer uma concessão aos amigos tornava-se inevitável, sempre depois de alguma insistência – à época, convicto, sabia que a evolução da humanidade seria inexorável. Hoje, basta leve aceno de convocação da minha filha para colocar-me em prontidão para o jogo – quanto à convicção, foi sofrendo ajustes conforme a realidade se apresentava e, muito mais econômica, transformou-se em reticente dúvida.

Fico pensando nela, e quando ela tiver sua filha, e no obscuro devir que somos obrigados a atravessar, pela força das circunstâncias e suas previsíveis ameaças.

Por isso escrevo uma mensagem para o futuro. Num trapo de pano ordinário, que será oportunamente enfiado e lacrado numa garrafa de vidro.
Introdução clássica, mera constatação:  Se você estiver lendo esta mensagem é porque muita coisa deu errado. A política não pode morrer. Se ela morre, morre também a civilização e fica a barbárie. 

A eleição, para presidente do país mais poderoso do mundo, de Donald (Homer) Trump, é a expressão espalhafatosa desse perigo. O argumento, que parece convencer a maior parte do eleitorado, é esdrúxulo: a gestão de uma cidade ou de um país feita por empresários de sucesso seria mais eficiente. Eficiente?

Logo eles, cujo vício mental, cláusula pétrea, é a maximização voraz do lucro, financeiro, bem entendido,  não o humano. Em seguida, baixo uma canastra suja de tristes argumentos para justificar a desesperada medida: Presos esquartejados, malária, zika e febre amarela. Corrupção, selvageria e as cores, melindradas, acinzentam. A indústria de armamentos bomba. Bomba também o lucro dos bancos e das grandes corporações. Guerras, mais corrupção e bombas. Fome. Muros.

Continuamos nas trincheiras. Ali resistimos e afirmamos nossa inteligência frente aos desafios que a complexidade do planeta , fascinante e movediça, continua a nos apresentar. Caso seja possível sua visualização, após a Chuva de Silício final, recomendo fortemente o seguinte documentário – 
https://www.youtube.com/watch?v=x7Z7MdEeiMs&sns=em – que é um belo testemunho de inteligentes esforços salpicados ao redor do mundo, que conseguem resolver, no âmbito local,  os principais problemas que a humanidade tem enfrentado, no tempo presente, este, em que escrevo essas preocupadas linhas.

Quantas casinhas voltamos para trás no tabuleiro do jogo atual? E se os dedinhos carnudos do Trump decidirem digitar o código secreto contido na valise do apocalipse, que detona as 2150 armas nucleares também salpicadas pelo mundo, num total de 7650 bombas e ogivas?

Não sei ainda como finalizar a mensagem, teria que ser algo curto e forte. Não sei tampouco qual dos caminhos que estamos prestes a trilhar. Mesmo que soubesse, onde deixaria a garrafa? Jogaria no Rio Tietê? No mar? Na floresta?

Ou simplesmente a mantenho onde ela está, alerta, sobre minha mesa de trabalho, aguardando ser convocada a qualquer momento, enquanto acalmo meus ânimos e do ponto final faço reticências…


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