Abrimos a porteira de Santa Luzia dos Paulinos 1 hora e 50 minutos depois de partirmos de Natal. Algumas casinhas que criança desenha (sem chaminés), espalhada por uma terra seca mas acolhedora. Quente, marcada pelos sucessivos pés que pisam a mesma areia torrada desde sempre, entremeada de arbustos verdes e alguns juazeiros. Fabiano veio nos receber. Sorridente mas intrigado.

Naquela terra o tempo é presente, largo, muito largo, espanta o futuro para frente e o passado fica bem longe. As horas vão passando, os dias, os anos e as gerações também. Não há registros do extraordinário. A nossa chegada e presença eram ruídos que desafinavam aquela vida de uma nota só. Fabiano tinha razões para o melindre.

Um túnel do tempo em que vi apenas duas modernidades: as cisternas que captam a água da chuva que molha o telhado (e os votos para os coronéis de plantão), e o celular de Ana Paula, a mais bonita e esperta dos 9 filhos de Maria da Conceição e José Barbosa.

Auro Lesher  2016-06-26 às 12.14.37
As imagens da foto revelam exterioridades dos personagens e do ambiente, as palavras do texto mostram o recheio, as interioridades, e juntas, tecem esta crônica.

Da esquerda para a direita:

Juliana e seu filho Tomás. Durante a visita de mais ou menos uma hora e meia ela permaneceu calada querendo observar sem ser observada. Dela só sei que tem 15 anos e que Tomás é filho de um pesadelo.

Fabiana (atrás e de camiseta listrada vermelho e preto), é a filha mais velha e, assim como mais quatro dos seus oito irmãos, apresenta síndrome de severo retardo do desenvolvimento neuro-psico-motor. É mãe de Luis, 4 anos (de camiseta preta), que também não fala e vive grudado com o avô, de quem, suspeita-se, também seja filho.

Keginaldo, (camiseta amarela), serelepe e impulsivo precisa ser constantemente vigiado. Por qualquer rajada de vento ele sai correndo. Um dia ele foi parar em vila extremada, Ceará Mirim, a cidade dos cornos, e sobrou, mais uma vez,  para uma das suas duas irmãs sãs executar o delicado resgate.

Não basta ser matriarca, tem que ter cara de matriarca. É assim com Maria da Conceição Barbosa, que fez um puxadinho, um manicômio doméstico, para dar conta de Inácio e Keginaldo, os dois mais complicados, frequentemente agressivos. Os filhos, da mesma maneira que os bodes e as galinhas, dão muito gasto e trabalho, mas também garantem o sustento. 5 LOAS, um benefício de assistência social que a mofatra da sinhá Vitória vem surrupiando 30% todo mês, com a desculpa de resolver a papelada.

José Barbosa tem a pele cascuda e uma resignação gelatinosa. Enxerga a vida com um olho só. O esquerdo, porque o outro foi arrancado numa briga com o irmão mais velho, quando tinha 7 anos de idade.

Eu, cara de gringo e alma mestiça, com Jales Clemente, psiquiatras sem fronteiras, buscamos entender o humano no Brasil profundo. A melhor ajuda para a situação dramática –  porém estável – de saúde mental que a família Barbosa tem de enfrentar, é a conexão local com o Programa Saúde da Família.

Ana Paula, 15 anos. Se há alguma possibilidade de mudança no roteiro pré-fabricado para cada um daqueles personagens, destino que vem dos antepassados, esta mudança estará nas mãos de Ana Paula. Perguntei-lhe quais eram seus sonhos. Seus olhos brilharam indisfarçáveis e, mantendo a compostura me respondeu: “Eu não penso nisso”. Eu reagi: “Duvido”.

Finalmente, Baleia (branquinha, deitada mais atrás na foto). Cansada mas atenta, se estivesse pensando, pensaria à maneira de sua homônima, que nesta terra os sonhos são calados ou então viram delírios.

“…Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de Preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria mais cheio de preás, gordos, enormes.”

*É Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), psicoterapeuta, coordenador do Projeto Quixote e fellow da Rede Ashoka de Empreendedores Sociais.


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