O cavanhaque de Fernando Henrique

Talvez FHC tenha que deixar crescer um cavanhaque para não ser reconhecido. Foto: Wilson Dias/Fotos públicas (23/05/2015)
Talvez FHC tenha que deixar crescer um cavanhaque para não ser reconhecido. Foto: Wilson Dias/Fotos públicas (23/05/2015)

Eu estava tentando sair do evento pela janela do térreo. Não que fosse alguma emergência, não que não houvesse outras saídas, mas eu escolhi essa, o que era perfeitamente normal. Mas alguma coisa no parapeito me impedia. Era uma bolsa muito grande, de couro verde.

Então me deparei com uma mulher alta, de calças, cujo cabelo em coque a tornava mais alta ainda, que me pareceu ser a dona da bolsa. Ela se acompanhava por um senhor elegante, de paletó de veludo cotelê e foulard, parecido com Fernando Henrique. Muito parecido. A não ser por um detalhe: um cavanhaque em formação. Por isso fiquei na dúvida se era ele ou não era.

Ele disse alguma coisa a meia voz para a mulher, que sorriu, percebendo a situação, tirou a bolsa da minha frente e eu pude descer com um livro embaixo do braço, ajudado por ele. Percebi, então, que o casal estava ali porque também queria entrar pela janela.

Quando eu já estava no chão, eu disse ao homem: “Você está de cavanhaque para não perceberem que você é o Fernando Henrique”?    A essa altura eu tinha certeza que era ele, não precisava nem da sua resposta.  Ele me entregou uma caneta esferográfica branca, sem dizer nada. Eu não entendi.

“Você quer que eu autografe o livro”?

“Sim”, respondeu.

 “Mas é um livro velho”…eu disse.

 Eu o folheei, algumas páginas estavam se descolando e havia anotações em tinta azul em várias delas. E foi então que eu vi que o autor do livro era Fernando Henrique.

 “Não tenho dinheiro para comprar um novo”,  disse o Fernando Henrique de cavanhaque.

 “Eu sei que você está tão fodido quanto eu” eu o consolei.  

 E completei, observando que o livro tinha sido impresso em 1984:

 “Bem, do jeito que estamos, até mesmo falar do tempo de Getúlio Vargas seria atualíssimo”.

 Fiz o autógrafo, entreguei o livro a ele e, ajudado por mim, ele entrou pela janela, depois da mulher, é claro.

 Ao acordar, ainda com o sonho fresco na memória, me perguntei porque Fernando Henrique, que vacilou tanto durante todo o processo de impeachment, no início foi contra, depois virou a favor, está tão quieto agora, quando todos querem saber o que pensa a respeito desse absurdo que está acontecendo no País. Principalmente porque ele é o único ex-presidente da República que, além de ainda ter alguma credibilidade, é insuspeito para opinar por não ter nenhuma ligação com Dilma.

Seu silêncio, num momento em que não dizer nada pode ser mais nefasto do que externar qualquer opinião, é perturbador, pois ele conhece melhor do que ninguém tanto Michel Temer, que foi secretário da Segurança Pública do governo Franco Montoro, no qual Fernando Henrique tinha muita influência, quanto o PMDB de Temer, do qual foi o primeiro a pular fora.

Eu me lembro bem o quanto ele ficou puto, a palavra é essa, embora sua formação não permitisse que ele jamais a usasse, quando Orestes Quércia se elegeu presidente do PMDB. Ele e seus fiéis companheiros – Montoro, Covas, Serra – sabiam muito bem o que significava aquilo, pois Quércia era o vice de Montoro e a sua resposta foi, por não aceitarem ter as suas biografias confundidas com a de Quércia, fundar um novo partido, o PSDB.  

A linha fisiológica imprimida por Quércia prevaleceu no PMDB desde que ele assumiu o poder, sempre partilhado com Temer, que seguia a mesma cartilha. Quércia tinha um trunfo: o impoluto Ulysses Guimarães ficou com ele, fiel ao partido que fundara, sem nunca participar de suas negociatas.

Os tucanos do PSDB nunca mais se aproximaram do PMDB de Quércia; ao contrário, faziam questão de se distanciarem dele e de sua agenda. Os peemedebistas da ala de Ulysses, autodenominados históricos, não foram cooptados por Quércia e assim permanecem até hoje.

Temer tornou-se o único mandatário do partido e herdeiro de sua ala fisiológica quando Quércia morreu, deixando uma herança incalculável. Nunca mais dividiu o poder com ninguém, nem esboçou qualquer aproximação com os tucanos até Aécio Neves chegar à presidência do PSDB e participar ativamente da tragédia nacional que estamos assistindo, a qual comenta com sorrisos.

Enquanto as entranhas da ala fisiológica do PMDB, expostas publicamente no impeachment, na formação do ministério, no desmonte do estado brasileiro e nos grampos que assombram, assustam e espantam o País, fazem um tremendo barulho que nem tapando ouvidos com algodão deixamos de ouvir, o silêncio de Fernando Henrique é perturbador. Não sabemos se significa perplexidade, desaprovação ou apoio.

Talvez ele tenha mesmo que deixar crescer o cavanhaque para não ser reconhecido.

  


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