O armarinho de Deus

Deus morreu fulminado numa manhã ensolarada de domingo. Ruptura de um aneurisma de carótida. Sua hipertensão arterial era de difícil controle. Calma, não é bem assim. Eu explico.

Desde o início do século vinte, Deus já se inquietava com os descaminhos da humanidade. O criador não se isenta da responsabilidade sobre as consequências de sua criação. 

Nem os fantasmas acreditam mais nos vivos. As flores de maio brotam em junho. O humor, quase delirante. O vexame parecia, àquela altura, inevitável, como, de resto, o tempo só vem confirmando a expectativa.

Ocorreu-lhe um pensamento inédito e subversivo: inverter o sentido dos procedimentos da ordem bíblica. Ele próprio na pele de um vertebrado mamífero humano. Não havia mais justificativa para adiar a ousada experiência. Uma derradeira tentativa de salvação, que ainda assim também fracassaria. 

Algumas decisões tinham que ser tomadas. Encarnaria como um pastor de ovelhas nas Colinas do Golan? (Seria muito parecido com o roteiro original). Um neuro-cirurgião do King’s College Hospital em Nova Iorque? O dono da Ambev em Zurique? (Seriam versões quase literais). Um médico-sem-fronteiras salvando vidas em Chernobyl? (Não seria prudente, poderia insultar o espectro do Diabo, que já havia morrido de diabetes, agravada pelos efeitos nefastos da radiação). E quando o plano seria executado? Virada do século? Nos dias atuais? 

Depois de algumas ruminâncias com o Minotauro e Itamar Assunção, tudo ficou definido. Seria Akhtar Haqqani, um senhor discreto, dono de um armarinho na esquina da Rua Três Rios com a Rua Prates, no Bom Retiro, durante a segunda metade do século vinte.

Eu o conheci no início dos anos setenta. Ainda não tinha dez anos de idade e a vó pedia, com frequência, que eu comprasse bugigangas para abastecer seu ateliê de costura e reparos. Para mim era sempre uma aventura lisérgica entrar naquele armarinho.

A loja era pequena, abarrotada de miudezas. O incenso de sândalo, as baforadas ritmadas do narguilé e os três grandes livros, Talmude, Corão e Bíblia, um em cima do outro, tudo disposto numa mesinha de centro, compunha a alquimia de um cenário e perfume que eu sinto até hoje, sempre que entro em lugar aconchegante. A figura franzina do velho de longa barba grisalha, sério, com olhar que atravessa. Um homem em preto e branco numa loja que transborda cores de suas rendas, botões, linhas, pedrarias, apliques, alfinetes e agulhas. São tantas costuras invisíveis. Era como entrar num grande caleidoscópio.

Um dia fui ao armarinho comprar contas e lantejoulas. A vó estava finalizando o enfeite que ficaria pendurado na porta do quarto da maternidade, onde dias depois nasceria minha irmãzinha. Akhtar usava um velho dedal como medida para recolher as quinquilharias que o freguês garimpava entre tantas alternativas. Uma nota de dez cada dedal cheio. Enquanto me atendia, calado à espera da próxima escolha, um grande despertador tocou ao lado da caixa registradora 16 horas.

Ele levantou o olhar que pela primeira vez parecia me enxergar. Pediu licença para tomar a dose vespertina de seu beta-bloqueador e deixou o dedal no balcão. Percebi algo estranho colado em seu fundo. Uma fita adesiva que subtraía de cada medida, uma camada de mercadoria, que grudada, ajudava a aumentar o lucro do estabelecimento. Ele voltou perguntando se eu já havia escolhido o que faltava. “É só isso mesmo, obrigado”. Paguei e saí da loja rapidamente.

Minha irmã nasceu no sábado. No domingo eu sorri para ela pela primeira vez. A vó, espantada, comentou com as visitas que o senhor Akhtar Haqqani, do armarinho, havia morrido de ataque súbito naquela manhã. Ouvi e sofri em silêncio.



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