[50 de 100] Um épico sobre a tragédia do amor, segundo Thomas Hardy

coluna50A escritora e editora inglesa Virgínia Wolf (1882-1941) ficou tão impressionada ao ler “Judas, O Obscuro”, de Thomas Hardy (1840-1928), que observou: “A mais poderosa expressão da filosofia de Hardy, e uma das mais profundas explorações do essencial da solidão do homem, ‘Judas, O Obscuro’ é um livro belo, extraordinário”. T. S. Eliot (1888-1965), ao falar da obra, ressaltou que “seu estilo toca o sublime”. Para Charles Child Walcutt, “o gênio de Hardy exige que o comparemos às grandes obras de William Shakespeare (1564-1616) e John Milton (1608-1674)”. Publicado pela primeira vez em Londres no ano de 1895, “Judas, O Obscuro” só teve uma primeira edição brasileira em 1948, pela Editora A Noite, com tradução de Octavio de Faria. O romance é um épico sobre a tragédia de um amor. 

No plano geral, Hardy narra os encontros e desencontros que aproximam e afastam casais ou destroem relações e vidas. Mas também explora o aspecto da incomunicabilidade que, muitas vezes, pode se tornar cruel, implacável, destruidora, com percalços, imprevistos e tragédias. E de situações que, às vezes, por incompreensão, por teimosia, por orgulho, por moralismo, põe tudo a perder entre duas pessoas. “Judas se perguntou se Sue realmente esquecera o lenço ou se quisera confessar um amor que, no último instante, não tivera coragem de expressar”, descreve o narrador. A trama inesquecível e arrebatadora do livro segue por essa linha e o transformou em um dos mais profundos, intensos e tristes romances já escritos. Com o adendo importante de que se trata de uma narrativa de primeira linha, de qualidade inquestionável, e não um folhetim estruturado para tirar lágrimas de moçoilas românticas, tão comum no final do século XIX e na primeira metade do XX. Portanto, trata-se de uma obra clássica, embora tão tenha ainda esse reconhecimento.

E o que faz de um livro um clássico? A combinação de alguns importantes elementos. Como a construção dos personagens, a originalidade da trama, a lucidez sobre questões de seu tempo, a capacidade descritiva e de envolvimento do leitor com a história e os personagens etc. Hardy preenche todos esses requisitos e vai além. Seu livro tem a peculiaridade de se ancorar principalmente em um protagonista que foi concebido para atravessar uma epopeia densa e trágica, raramente vista na história da literatura mundial. Para estruturá-lo, o autor passeia por sua vida, numa longa vivência que começa quando Judas Fawley tem onze anos de idade e é órfão de pai e mãe. Criado pela tia Drusilla Fawley, ele vive na aldeia de Marygreen. O garoto cresce num ambiente humilde e descobre no professor Richard Phillotson um exemplo e uma referência de vida, a ponto de levá-lo a seguir seus passos de educador e a querer ingressar na Universidade Christminster – onde pretende se graduar, ser ordenado e se transformar em um professor e clérigo famoso. Enquanto ajuda sua tia na padaria, Judas estuda por sua própria conta e devora clássicos gregos e latinos.

O menino se tranforma em autodidata porque não tem condições de pagar um professor. Inteligente e determinado, decide juntar dinheiro para se manter em Christminster e se torna aprendiz de pedreiro em Alfredston. Também aprende noções básicas do trabalho de carpintaria e de restauração de igrejas. E assim Judas segue uma vida simplória e dedicada, mas que quer mudar de qualquer jeito. Aos 19 anos, começa a namorar Arabella Donn, filha de um criador de porcos, que o engana com uma falsa gravidez e o força a se casar com ela. Sem terem muito em comum, os dois brigam constantemente, até que a relação acaba e ela vai embora do país. Judas se sente livre e estimulado a tentar entrar em Christminster. Por fim, muda-se para lá e passa a se manter com trabalhos de reparador de estrutura de igrejas e colégios. Por fim, descobre o amor, que também será sua ruína, ao reencontrar e se apaixonar pela prima, Sue Bridehead, de beleza destacada e um contraste de temperamento em relação a Arabella – delicada e refinada, além de ter interesses intelectuais.

Com a ajuda de Judas, Sue se torna professora-aprendiz, orientada pelo professor Phillotson, que irrita o rapaz por estar interessado na sua prima. Como continua legalmente casado com Arabella, ele não pode se unir à prima – que parece ignorar seus sentimentos. Judas é rejeitado como professor por todos os colégios. Sente-se desencorajado e abandona o sonho de seguir estudos teológicos e a carreira acadêmica. Sue se dá melhor. É aprovada no colégio de formação de professores e promete a Phillotson se casar com ele em dois anos, após concluir o curso. Embora seja caloroso com Sue, Judas não recebe qualquer demonstração de afeto dela, o que o deixa confuso.

Acontecimentos inesperados e de idas e vindas deixam dúvidas sobre o desdém da moça e seus impulsos impensados em relação ao primo. Judas fica terrivelmente deprimido após o casamento abrupto entre Sue e seu mestre. E busca na bebida um consolo. Ao fazer isso, reencontra Arabella, que voltara da Austrália e tinha se casado com um homem chamado Cartlett – o que constituiu um caso de bigamia. A ex-esposa não esconde seu interesse pelo professor, que se mantém, depois de incontáveis fatos ligados ao amado e a Sue. A partir desse momento, a história se desenvolve entre dramas, intrigas, traições e decepções, na preconceituosa Inglaterra da Rainha Vitória, que Hardy fez questão de ressaltar como pano de fundo do seu romance.

Hardy era mestre em segurar o interesse do leitor pelas sucessões de situações dramáticas, graças aos infortúnios do protagonista, em seu caminho trágico, onde tropeça em pedra atrás de pedra, como afirma Fábio de Souza Andrade, numa das edições brasileiras, da Geração Editorial, de 1994. “Não é um caminho que esquadrinhe o centro do mundo, nem mesmo que esbarre em cenas grandiosas da história se fazendo”, acrescenta Andrade. Para ele, assumidamente periférico, o personagem “experimenta uma educação sentimental marcada pela desilusão, uma sucessão de sonhos esvaziados pela dureza da realidade, com campos ingleses de Wessex”. O romance se destacou também pelo aspecto descritivo do livro – as paisagens, a arquitetura, a cidade. Ao mesmo tempo em que tenta apenas envolver quem o lê, na primeira parte, com a infância, a adolescência e os primeiros anos da juventude de Judas, acompanhados de instigantes análises psicológicas dos personagens.

Em seu livro, Hardy compôs uma narrativa ao mesmo tempo cativante e perturbadora por parecer uma história real, palpável, possível, realista demais. A certa descrença na felicidade do amor que marca o romance pode ser explicada pelo estilo que o autor estabeleceu em seus romances, descritos como de pessimismo radical. Uma opção que contrariava sua origem, embora seu “Judas” tenha muito de autobiográfico. Diferentemente de muitos autores de sua época, ele não passou dificuldades na infância. Filho de um próspero construtor civil, viveu sua infância no campo, estudou arquitetura e trabalhou na restauração de edifícios antigos, principalmente igrejas, enquanto escrevia versos que só publicaria no fim da vida, quando se revelou um extraordinário poeta. Era famoso, então, por escrever obras extensas que se tornaram clássicos da literatura inglesa – voltados, em sua maioria, para a velhice, o amor e a morte, influiu na reação anti-romântica. Além disso, foi considerado um brilhante contista, que traçou perfis psicológicos de personagens conscientes de seus desejos sexuais e de sua própria opressão pela sociedade.

Em sua apresentação, o editor Luiz Fernando Emediato afirma que “Judas, O Obscuro” é o maior livro de amor, de desencontro, e de desespero já escrito. Consagrado sim, como um dos dez melhores romances de todos os tempos, celebrado nem tanto, seu protagonista é um daqueles personagens da ficção que não desgrudam de nossa memória por toda a vida.


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