[54 de 100] Uma fábula sobre o fim da civilização, segundo Pierre Boulle

img214A crítica nunca destacou o pequeno romance “O Planeta dos Macacos”, do francês Pierre Boulle (1912-1994) como uma obra relevante. Tem seus motivos, quando se apóia em formalismos e técnicas de análise para julgar o conjunto em si e não alguns aspectos destacáveis em separado. O livro, durante um breve tempo, não passou de um obscuro título de ficção científica, desses que se perdem em meio a coleções de centenas de volumes, consumidos por nerds, como a lendária série portuguesa Coleção Argonauta, da Editora Livros do Brasil, com títulos de bolso – foram mais de 500, entre 1953 e 1999. A curiosidade pelo volume mesmo só surgiu quando a Twentieth Century Fox começou a anunciar que lançaria sua adaptação para o cinema, em 1968, cinco anos depois da sua primeira edição em francês.

Boulle, sem dúvida, não era um escritor que se destacasse pela excelência literária. Escrevia bem, era criativo, sabia conduzir uma narrativa, planejada com momentos de tensão e um final desconcertante. Mas não impressionava pelos temas que escolhia, considerados menores, como guerra e ficção científica. “O Planeta dos Macacos”, entretanto, merece ser reverenciado e lido por uma série de outros fatores – a única edição brasileira só saiu em 2008, pela Ediouro. Principalmente porque se destaca no subgênero em que está classificado. Nesse sentido, é uma pequena obra-prima dentre aquelas que tratam sobre o futuro da humanidade, escritas por mestres cultuados como Karel Capek (“A Guerra das Salamandras”), H. G. Wells (“A Máquina do Tempo”), Jack London (“A Peste”), George Orwell (“1984”), Phillip K. Dick (“Caçador de Androides) e muitos outros. 

Muito do livro de Boulle é diferente do que se vê no primeiro filme. Em especial, seu desfecho. A história começa em um futuro bem distante, por volta do século XXXIX, quando dois adolescentes aparentemente ricos, em férias no espaço, quando fazem um passeio flutuante, capturam uma garrafa com um manuscrito feito por um jornalista humano em que ele relata a experiência macabra que teve ao visitar um planeta em que os papéis de homens e macacos tinham sido invertidos. Enquanto estes evoluíram em inteligência, os primeiros foram forçados a viver em estado primitivo, quase animal, semelhante a símios trancafiados em zoológicos ou caçados na mata como cavalos selvagens a serem domesticados. 

Trata-se, claro, de uma sátira corrosiva da relação entre homens e macacos – usados de modo polêmico em experiências de viagens espaciais no começo da década de 1960, quando o livro foi escrito. Ou de uma fábula, já que animais se fazem presentes como personagens principais. Para iniciar a história, Boulle faz uma brincadeira com o velho clichê literário em que um náufrago atira uma garrafa ao mar com um pedido de socorro e aguarda por anos, na esperança de que a ajuda um dia apareça. No caso, essa possibilidade, no caso, é ainda mais reduzida porque se trata da imensidão do cosmos. Jinn e Phylis, os nomes do casal adolescente, passam a ler o relato em sua língua, coincidentemente, do repórter Ulysses Mérou, que embarcou numa viagem espacial com dois companheiros humanos no ano de 2500. 

Eram eles o astronauta Arthur Levian e o professor Atelle. Levaram como mascote o chimpanzé Hector. “Confio este manuscrito ao espaço, não com a intenção de obter socorro, mas para ajudar, porventura, a conjurar a medonha calamidade que ameaça a raça humana”, escreveu o jornalista, na introdução do seu desesperado relato. A intenção da espaçonave – e do vôo – era alcançar a região de Betelgueuse, localizada na galáxia Alfa de Orion, a uma distância de aproximadamente 300 anos luz da Terra, considerada notável por uma série de razões, como a possibilidade de se encontrar planetas habitáveis. Pelos cálculos do professor Antelle, a viagem duraria dois anos do tempo terrestre, como conhecemos, mas teriam decorrido três séculos e meio na Terra. Assim, se regressassem imediatamente, o planeta natal teria envelhecido 700 anos. 

Os viajantes, porém, não se preocupavam com isso, diante da ocasião que se mostrava excepcional para eles – no caso, fama e a curiosidade de ver um novo mundo, além do fato de que familiares e amigos não existiriam mais. “Mesmo que a minha reportagem fosse publicada oitocentos anos depois, talvez por isso mesmo, teria um valor único. Aceitei (o convite) com entusiasmo”. Tudo aparentemente dá certo. Ao chegarem a Betelgueuse, a aeronave cai num planeta idêntico á Terra, que apelidam de Soror. Maravilhados com as semelhanças de vegetação e clima, atiram-se nus em uma cascata para refrescante banho. O entusiasmo é rompido quando notam, nas margens do rio, pegadas humanas descalças e que suas roupas desapareceram. Pelo tamanho, pertenciam a uma mulher, que logo surge à sua frente – vão apelidá-la de Nova. 

O narrador descreve a moça como “uma jovem a menos que fosse uma deusa. Afirmava com audácia a sua feminilidade perante este monstruoso sol, inteiramente nua, sem mais adorno que uma cabeleira bastante comprida que lhe tombavam sobre os ombros”. A partir desse ponto, a história fica mais parecia com a do filme. Os três acabam numa tribo de humanos primitivos que não se comunicam pela fala. Na manhã seguinte, todos entram em correria porque parece se aproximar um perigo eminente. E esse mal surge em forma de grandes gorilas armados, vestidos como soldados, dispostos a matar e a pegar algumas presas – homens, mulheres e crianças. Afinal, aquele não era o Planeta Terra, governado por seres supremos, à semelhança de Deus – humanos, enfim. Era, na verdade, o Planeta dos Macacos. E o poder estava com eles. E a força das armas também. 

Em 1968, “O Planeta dos Macacos” foi transformado em filme por Franklin J. Schaffner. Levou o Oscar de melhor maquiagem e ganhou quatro sequências nos seis anos seguintes, além de uma série de TV. Tanto o livro quanto o filme são a essência do conceito de ficção cientifica: fazer uma crítica impiedosa à sociedade contemporânea e interrogar-se sobre o futuro da humanidade. A intenção punitiva de Boulle contra os homens é clara no romance. A troca do papel natural do homem pelo do macaco, uma brincadeira às avessas da teoria da evolução de Darwin, tem o sentido de mostrar o quanto predomina nos humanos os instintos destrutivos mais primitivos e que a natureza pode um dia castigá-lo por isso. De caçador a caça, o homem se vê acuado e em desvantagem diante de feras que são espelho deles mesmos. E sabe disso. 

É só uma questão de oportunidade a briga que se trava entre as duas subespécies. O humano quer sim confrontar os gorilas. Não para ser livre, mas para restabelecer seu papel hegemônico entre os animais e devolver os “animais” ao lugar subalterno que lhe cabe. Boulle, porém, é implacável e não dá qualquer esperança de que isso venha a acontecer, quando o leitor chegar ao último parágrafo do livro, com a surpreendente reviravolta na trama. Não, a história não termina como no filme, com os heróis persistentes diante da Estátua da Liberdade destruída em Nova York. Ele consegue ser bem mais cruel. Se viu a história no cinema, portanto, leia o que está escrito.


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