[55 de 100] O perverso e o insano das relações, segundo Jane Bowles

DIGITALIZAR0003A história de vida da escritora americana Jane Bowles (1917-1973) é uma das mais singulares e trágicas no meio literário. Ela teve uma existência irregular e atormentada, com crises de depressão e que a levaria a um derrame cerebral aos 40 anos de idade, em 1957. Por causa das sequelas, foi internada em um hospital psiquiátrico em Málaga, onde sobreviveria por 16 anos, com a mente debilitada e impossibilitada não só de escrever como de compreender o significado ou sentido de frases. Nesse período, intercalou momentos de recuperação. Antes, na adolescência, viveu por um longo período gravemente enferma, o que a levou a longos tratamentos na Suíça. Filha de pais judeus de alta classe média nova-iorquina, Jane teve uma educação rígida e reprimida. Aos 18 anos, porém, frequentava os bares gays do Greenwich Village. 

Sua vida tomou outra direção depois que conheceu o escritor Paul Bowles (1910-1999), autor de “O Céu que nos Protege”, filmado por Bernardo Bertolucci em 1989.  O encontro aconteceu em fevereiro de 1937, quando ele já era compositor famoso. Após um namoro tempestuoso que durou um ano, eles se casaram, em 21 de fevereiro de 1938, um dia após Jane completar 21 anos. Em seguida, o casal Bowles viajou para o Panamá, Costa Rica, Guatemala e Europa, até se estabeleceu por um período em Nova York, ocasião em que Paul trabalhou como crítico de teatro para o jornal “New York Herald Tribune”. Em 1947, o casal se estabeleceu em Tanger, no Marrocos. Mesmo casados por 35 anos, até a morte de Jane, os dois sempre levaram uma relação de fachada, pois ambos mantinham relacionamentos homossexuais.

Enquanto isso, nos primeiros anos de casada, Jane começou a se destacar como escritora. Sua obra, considerada revolucionária e vigorosa, foi escrita até os 30 anos, antes de ir para o Marrocos. E se tornou mínima: um romance (“Duas Damas Bem Comportadas”), que a consagrou desde o primeiro momento; uma peça de teatro – a celebrada In “The Summer House” (Na Casa de Verão), que estreou nos palcos em 1953; e sete contos, reunidos no badalado “Plain Pleasures” (Simples Prazeres). Seus textos eram compostos, predominantemente, de estranhos personagens, como Christina Goering, cuja história tem muito de sua própria biografia. O livro foca na vida da excêntrica e impulsiva Christina Goering, uma rica herdeira nova-iorquina, muito à frente do seu tempo, que decide levar uma vida cheia de liberdade e contra a opressão moral às mulheres. A outra dama do título é senhora Copperfield, que se perde nas tentações de um Panamá delirante. 

O fato que impulsiona as duas é um encontro entre elas em uma festa da alta sociedade. A conversa, amena para uma ocasião tão formal, acabaria por mudar suas vidas. Ambas, a seu modo, damas que consegue manter o respeito, mas que se dão ao direito de que nada lhe é proibido e partem por caminhos singulares na busca por seus desejos – descritos nos dois longos capítulos do livro – do total de três. Os passos das duas voltam a se cruzar em determinado momento, com resultados surpreendentes. Publicado pela primeira vez em 1943, o romance tem uma narrativa inteligente e fluente, com apurada análise do comportamento humano, em que diálogos se sucedem com reflexões sobre o modo como seus personagens veem o mundo. Ao misturar humor refinado, ironia e certo cinismo, Jane expõe sua visão particular das relações e o quanto há de insano, perverso e mesquinho nas relações familiares e sociais.

Essas qualidades foram notadas de imediato e fizeram de “Duas Damas Bem Comportadas” uma obra-prima. Seria recebido pela crítica como um livro escrito com sagacidade e compaixão mordazes, além de ser uma agradável e afiada celebração da liberdade feminina – embora personagens masculinos se destaquem na história, o universo predominante é feminino. A ponto de torná-lo um marco na literatura do século XX. Segundo a crítica, as personagens  centrais são mulheres que lembram em suas atitudes os delírios narcotizados de William Burroughs (1914-1997), autor do clássico da contracultura “Almoço Nu”. Ou seja, trata-se de figuras singulares que não escondem a falta de força de vontade, que expressam apenas necessidades terríveis e frustrações cômicas ou dolorosas, enquanto vagam por casas cheias de lixo e amizades estúpidas.

Jane Fowles dizia que detestava escrever, o que justificou, em parte, sua pequena produção, porém fundamental para uma época. Também falava de sua repulsa a viajar, embora tenha percorrido parte dos cinco continentes com o marido. Tinha medo de muitas coisas, como o mar, fogo, lugares fechados e das pessoas que amava. Fisicamente, era uma mulher delicada, bonita e pequena, com olhos desafiadores e nariz arrebitado. O amigo Truman Capote (1924-1984) – que assina o prefácio da primeira edição brasileira, publicada em 1984, pela L&PM, com tradução de Lya Luft – em 2013, a Amarilys relançou a obra com novo título, “Duas Damas de Respeito” – a chamava de “lenda moderna” e a descreveu fisicamente como “uma mulher de cabeça encaracolada de dália, seu nariz arrebitado e os olhos de brilho travesso, levemente estrábicos, sua voz muito original (um soprano rouco), as roupas de rapaz, o corpo de menina de colégio, e seu andar vagamente manco, é praticamente a mesma de quando a conheci, há mais de vinte anos”. 

Na ocasião em que se reviram, prosseguiu ele, ela parecia um eterno moleque, “sedutora como a mais sedutora das pessoas não-adultas, mas com alguma substância mais fria que sangue correndo nas veias, e com uma argúcia, uma sabedoria que nem mesmo a mais singular criança-prodígio jamais possuiu”. Segundo Capote, as lembranças mais felizes dela “giram em torno de um mês passado em quartos vizinhos, num hotel agradavelmente decadente na Rue Du Bac, num inverno gélido em Paris – janeiro de 1951. “Muitas noites frias passamos no confortável quarto de Jane (lotado de livros, jornais, coisas de comer e um cachorrinho pequinês branco e vivo, comprado de um marinheiro espanhol); longas noites que passávamos escutando um fonógrafo e tomando aguardente de maçã quente, enquanto Jane preparava cozidos de carne maravilhosos, com muito molho, num fogãozinho elétrico: ela é uma boa cozinheira, sim senhor, e uma espécie de comilona, como se suspeita através de suas histórias, cheias de relatos sobre comida e seus ingredientes”.

Mesmo com as graves doenças físicas e mentais que limitaram sua escrita, Jane Bowles foi considerada por muitos como uma grande e original escritora, comparável a Gertrude Stein (1874-1946) e à sua contemporânea Carson McCullers (1917-1967). Foi o suficiente para torná-la admirada e até venerada por críticos e escritores como Tennessee Williams (1911-1983) e Capote. Escreveu John Ashbery (1927), poeta e crítico do “The New York Times”, sobre ela: “nenhum outro escritor contemporâneo tem a capacidade de produzir tantas surpresas, e a surpresa é o ingrediente essencial de uma obra-prima”. Williams a considerava a mais importante ficcionista da literatura moderna americana. “’Duas Damas Bem Comportadas’ é o meu livro favorito, não há outra novela moderna que seja susceptível de converter-se em um clássico”.

A morte de Jane aconteceu subitamente, em 1973, aos 56 anos, quando ela dançava em uma festa no hospício em que estava internada. Seu epitáfio, recolhido de seus escritos, diz: “Ainda não gostei de nenhum dia, mas não desisti de procurar a felicidade”.


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