[58 de 100] Os prazeres e as futilidades de uma tradição, segundo Richard Brautigan

capa58A tradução que o escritor brasileiro José J. Veiga (1915-1999) fez de “Pescar Truta na América”, romance do americano Richard Brautigan (1935-1984), não resultou de uma encomenda editorial. O consagrado autor de “A Hora dos Ruminantes” (1966) o descobriu por acaso no começo da década de 1970 e se impressionou tanto com sua prosa que fez a tradução da obra para, só depois, buscar um editor – o livro saiu pela Editora Marco Zero, de São Paulo, em junho de 1991. Lançado originalmente em 1967, com o subtítulo de ”Romance” – provavelmente com o propósito de esclarecer que se tratava de uma obra literária e ficcional, não um manual de pescaria –, o volume chegou às livrarias, portanto, no auge da contracultura. E dos movimentos de protestos contra a guerra do Vietnã e pela ampliação de direitos civis para negros e mulheres que tomaram conta dos Estados Unidos. 

O livro Brautigan é uma pequena joia literária que pode agradar quem aprecia textos que vão contra a corrente. Ou seja, irreverentes e sem compromissos com formalismos de criação, tema e estrutura, também chamada de maldita. Nesses quesitos, aliás, a obra compõe uma das narrativas mais inventivas e originais de seu tempo e de outras épocas, dentro da rica produção americana do século XX. “Comentando um livro de Richard Brautigan, escreveu alguém no Examiner & Chronicler, de São Francisco (a matéria não era assinada), que, ‘quando formos velhinhos, as pessoas estarão escrevendo Brautigans, como hoje escrevemos romances’. Porque Richard Brautigan foi um inventor”, escreveu Veiga, na apresentação. “Ele conseguiu escrever seus textos como se estivesse inventando literatura.” Acrescentou em seguida: “Caçador do diferente em literatura, descobri Richard Brautigan no começo dos anos de 1970, em uma pequena livraria da Rua do Ouvidor (não existe mais), que só vendia títulos importados”. Não se trata de “Pescar Truta na América”. 

Entusiasmado, Veiga prosseguiu em suas observações: “A capa e o título, ‘Watermelon Sugar’, me chamaram. Abri o livro – e a primeira frase me pegou: ‘Em Watermelon Sugar, os feitos estavam feitos, como minha vida está feita em Watermelon Sugar. Vou lhe contar porque eu estou aqui e você está longe’. Esse cara é diferente, pensei. Fui capturado. A leitura de qualquer livro de Richard Brautigan é uma aventura intelectual rara. Nunca se sabe o que vem a seguir e o que vem é sempre uma surpresa. Não se trata aqui daquele experimentalismo às vezes brilhante, mas sobre o nada, e do qual mesmo o leitor mais intelectualizado já se desinteressou. O texto de Brautigan é sempre novo, sempre inventivo, sempre original – e sempre sobre alguma coisa. É sobre tudo o que toca o ser humano neste mundo estapafúrdio e, ao mesmo tempo, fascinante. Quem quiser conferi-lo tem nas mãos a oportunidade de fazê-lo.” 

Em menos de meio século de vida, o escritor escreveu dez romances, nove livros de poesia e uma coleção elogiada de contos. Morou muitos anos na cidade de São Francisco e, perto do fim da vida, dividia o tempo entre dois extremos: sua fazenda no estado de Montana e a caótica cidade de Tóquio. Nessa época, apesar da reputação, não era mais tão famoso como um ídolo literário dos anos de 1960 e começo dos anos de 1970, tanto por seus romances quanto pelos poemas. Segundo especialistas em sua obra, as razões para esse reconhecimento podem ser várias. Desde a vinculação de sua literatura à personalidade do autor, notoriamente atrelada à contracultura americana, até a linguagem coloquial e irônica de sua obra, comparada à dos romances de Kurt Vonnegut (1922-2007), autor do clássico “Matadouro 5”. Ele também seria sempre associado aos escritores do movimento beat, embora a única relação entre eles tenha sido o fato de viverem na mesma cidade.

“Pescar Truta na América” pode ser descrito como um livro abstrato, sem um aparente enredo central. De leitura saborosa e instigante, a sua singularidade começa no fato de que não é, de fato, um romance, não é uma novela, nem uma reunião de contos ou de poemas. São apenas histórias ou capítulos curtos que parecem independentes, quase sempre de duas páginas – nunca passam de oito –, com anedotas ou brincadeiras sobre o hábito do americano médio de sair para pescar trutas ou algum outro peixe qualquer. Um comportamento quase cultural, ritualístico, simbólico para um país rico e cheio de manias, que causava angústia em Brautigan. As narrativas trazem quase sempre os mesmos personagens que, muitas vezes, reaparecem de uma história para a outra. O título, usado de várias maneiras, dá o tom de humor: “Pescar Truta na América” é o nome de um personagem, de um hotel, do próprio ato da pesca e também outro tipo chamado “Pesca Truta na América Baixinho”. Etc. 

Assim, as brincadeiras do autor confundem tanto o leitor que, a partir de determinado momento, ele passa a acompanhar  “Pescar Truta na América”, um sujeito que existiria desde o começo do século XIX. “Levado à bebida e ao desespero, suicidou-se em Bolinas, Califórnia, aos 49 anos”, escreve ele. Trágica coincidência: o personagem tinha a mesma idade de Brautigan quando este morreu. A maioria dos capítulos, segundo disse o escritor depois, foi ambientada em três épocas e localidades, com aspectos autobiográficos: a infância do autor, vivida no noroeste do Pacífico dos Estados Unidos, seu dia-a-dia de adulto em São Francisco e uma viagem de acampamento que fez para Idaho com sua esposa e filha recém-nascida, durante o verão de 1961 – a maioria dos textos foi escrita durante esse passeio. 

O tema da pesca da truta foi usado, segundo os críticos, como um ponto de partida para críticas veladas e muitas vezes cômicos da sociedade americana mainstream e sua cultura oficial. Prova disso são os vários objetos simbólicos citados no decorrer dos textos. Os personagens do livro são tipos moralmente corrompidos no melhor sentido do termo, ensandecidos, loucos, delirantes, como Mr. Hayman: “Durante toda a sua vida, Mr. Hyman nunca bebeu uma xícara de café, nunca filmou, nunca deitou com uma mulher, e achava que seria doido se deitasse.” No mesmo texto, um dos mais poéticos de sua literatura corrosiva, Brautigan observou: “Ele teve a cara de 90 anos durante 30 anos, e um dia achou que ia morrer, e assim o fez. No ano que ele morreu, as trutas não apareceram no riacho Hayman, nem nunca mais. Morto o velho, as trutas acharam melhor ficar onde estavam”. 

Em sua resenha, Daniel Falkemback observa que “Pescar Truta na América” serve também como prova em uma leitura comparada de que Brautigan não se encontra tão próximo quanto se imagina dos beats Allen Ginsberg (1926-1997) ou Jack Kerouac (1922-1969). “Certamente não é um romance comum nem austero: é metaliterário e irônico como muitas obras pós-modernas americanas de sua época”, afirma. Assim, não se vê nele, necessariamente, o esforço para se contar uma história no sentido tradicional ou explicar ao leitor tudo o que se espera dele. Na opinião de Falkemback, trata-se de uma experiência literária muito própria de sua época, mas, ainda assim, uma leitura interessante no século XXI. “A excelente tradução de José J. Veiga só contribui para que o leitor se divirta com uma obra aparentemente simplória, mas que é na realidade muito bem pensada”. 

Irônico desde a abertura, o livro traz na capa uma fotografia de Brautigan com uma amiga identificada como Michaela Le Grand, a quem ele se referia como sua “Muse”. A imagem foi registrada no Washington Square Park, em San Francisco, em frente à estátua de Benjamin Franklin (1706-1790). O primeiro capítulo do livro é uma descrição estendida e fantasiosa dessa foto que literalmente fisga o leitor como uma truta, com o perdão do trocadilho. E, desse modo, começa o singular “Pescar Truta na América”, um tributo à imaginação, no que ela pode gerar de mais simples e genial.


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