[62 de 100] O mal de todas as guerras, segundo Erich Maria Remarque

livro62O inferno em que resultou na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi vivido intensamente e de modo quase trágico pelo escritor alemão Erich Maria Remarque (1898-1970). De diversas formas. Primeiro, como soldado, nos dois últimos anos de combates, quando sobreviveu após sofrer três ferimentos, um deles com muita gravidade. Depois, passou quase uma década atormentado pelos traumas que ficaram impregnados em suas lembranças. Até decidir transformar os muitos cadernos que escreveu sobre a experiência em um dos romances mais importantes do século XX: “Nada de Novo no Front”. Publicado em 1929, o livro causou ira e perplexidade em parte dos seus compatriotas, por causa da sua visão nada convencional sobre o conflito. Ao invés de exaltar as façanhas dos soldados alemães ou mesmo reverenciar de forma patriótica o desempenho de seu país, Remarque escreveu uma das mais contundentes narrativas contra qualquer tipo de conflito armado em grande escala.

Mesmo assim, o pequeno romance vendeu 500 mil exemplares somente na Alemanha, em uma época de inflação altíssima e desemprego em massa. E se fez ouvir rapidamente em todo o mundo, pois seu texto foi logo traduzido para diversos idiomas e, no ano seguinte, virou o que alguns consideram o melhor filme sobre guerra já realizado em todos os tempos – vencedor do Oscar de melhor longa de 1930. Batizado como Erich Maria Kramer, Remarque interrompeu seus estudos aos 18 anos porque foi forçado a participar do conflito. Até que tentou retomar sua vida depois do conflito, em uma Alemanha derrotada e completamente devastada, falida economicamente e com hiperinflação. Conseguiu trabalhos breves como mestre-escola, pedreiro, organista, motorista, agente de negócios etc. Aos poucos, aproximou-se do mundo das letras, ao se tornar crítico de teatro, ao mesmo tempo em que começou a escrever pequenos artigos, que mandava para os jornais e revistas alemães, nem sempre aceitos para publicação. Por fim, passou a pular de emprego em periódicos instáveis das cidades de Hanover e Berlim. 

Enquanto isso, Remarque enfrentava o drama de ter que lidar de modo equilibrado com as lembranças da guerra, que lhe causavam pesadelos. Suas noites de insônia, então, passaram a ser preenchidas por infindáveis anotações sobre os horrores que viveu, os abusos cometidos por oficiais despreparados etc. Nunca ficou claro se ele já pensava em transformar tudo em um romance ou se a ideia surgiu depois, quando parte dos relatos e confissões já tinha sido registrada. Ao comentar com conhecidos seus da Editora Ullstein, viu-se estimulado a concluí-lo para ser lançado o mais rápido possível. O projeto, porém, naufragou. Os textos foram lançados, inicialmente, como folhetim pelo jornal “Vossiche Zeitung”. Publicado como livro pela primeira vez no mesmo ano da quebra da bolsa de Nova York, “Nada de Novo no Front” se tornou alvo de críticas, polêmicas e discussões, no momento em que ideias nazifascistas, de caráter belicista, espalhavam-se pelo mundo. Principalmente em seu país. 

Com impressionante equilíbrio, sem cair no melodrama ou na pieguice, o romance batia pesado ao denunciar a crueldade e a estupidez da guerra e retratar a verdadeira face dos soldados que nela se envolvem. Logo na abertura, ele faz um alerta ao leitor: “Este livro não pretende ser um libelo, nem uma confissão, e, menos ainda, uma aventura, pois a morte não é uma aventura para aqueles que se deram face a face com ela. Apenas procura mostrar o que foi uma geração de homens que, mesmo tendo escapado às granadas, foram destruídos pela guerra.” E assim ele conta a história de Paul Baumer, filho de uma humilde família alemã que se deixa levar pelo entusiasmo do dever patriótico de lutar no conflito armado que está prestes a começar. Ele e seus amigos são instigados por adultos e professores, como se tudo não passasse de uma grande festa. Após abandonar a escola, junta-se às trincheiras de soldados alemães. 

O próprio Paul é o narrador. A trama começa quando, em algum lugar da Frente Ocidental europeia, ele e seus companheiros, todos da Segunda Companhia, tentam se recuperar atrás do front, depois que os últimos combates reduziram seu pelotão à quase metade, de 150 para 80 homens. O rapaz não precisa de muito tempo para mudar bruscamente de opinião. Quando os combates começam, ele se vê cercado de cadáveres de meninos como ele, enquanto outros se arrastam feridos, mutilados, moribundos. Conclui que trocou sua juventude pela única e cruel certeza, a do absurdo da guerra, independente do lado em que se está. Em seu relato, descreve como os vinte rapazes da sua turma, patrioticamente, alistaram-se na guerra e vão ter suas vidas destroçadas, inclusive seus valores éticos e morais. 

Ele descreve passagens dramáticas de horror a que todos são submetidos. Quando o inimigo inicia um bombardeio de artilharia, determinada noite, que prossegue durante o dia seguinte, nenhum ataque geral começa, mas ninguém pode sair no bombardeio para buscar comida. Isso faz com que vários recrutas tenham acessos de insanidade e desespero. O próprio narrador conta que olhou nos olhos de um francês no solo e lançou uma granada de mão nele. Os alemães, em seguida, atingem a linha inimiga e repelem os franceses. Mais baixas se sucedem nos dias seguintes; os homens nem sempre podem recolher seus camaradas feridos na terra-de-ninguém, e eles morrem lá. O bombardeio recomeça com toda a força. Novos recrutas são trazidos, mas eles morrem em quantidades aterrorizantes por enganos que Paul descreve como tolos, pois são muito inexperientes. A sua companhia chega a um ponto de possuir apenas 32 homens, dos 150 iniciais. E mais vão morrer, pois a guerra está só começando para eles. 

A obra contrariava o conceito predominante de que a guerra era um mal necessário, uma “fatalidade histórica marcada por certo romantismo heroico, que vinha da verdadeira face dos soldados que nela se envolveram. Remarque transformou seus companheiros de batalhas em miseráveis: homens, mulheres e crianças maltrapilhos, neuróticos e assustados que, ao mesmo tempo, recorriam à barbaridade para sobreviver. Após longa descrição da crueldade e do desrespeito dos oficiais em relação aos recrutas, o narrador observa: “Tornamo-nos duros, desconfiados, impiedosos, vingativos e brutais – e isso foi bom porque era precisamente estas qualidades que nos faltavam. Se nos tivessem mandado para as trincheiras sem este período de formação, a maioria, sem dúvida, teria enlouquecido. Mas, assim, estávamos preparados para o que nos esperava.” 

“Nada de Novo no Front” pode ser visto como uma fonte importante de informação sobre a Primeira Guerra Mundial. Por outro lado, até então, na literatura mundial, a guerra era retratada como um pano de fundo para romances de aventura ou com neutralidade, e era admissível como solução para conflitos políticos. Uma exceção era o romance “O Emblema Rubro da Coragem”, de Stephen Crane (1871-1900), sobre a Guerra de Secessão americana (1861-1865) e o rapaz covarde que deserta, mas vira herói pelo acaso. Com a obra-prima de Remarque, pela primeira vez, dá-se um tratamento radicalmente contrário à experiência da guerra – por isso o livro é considerado o fundador do caráter pacifista que marcaria a moderna literatura ocidental e o próprio pensamento intelectual por todo o século XX. As ânsias do autor, que teve seus livros proibidos e queimados pelas autoridades nazistas, foram de encontro às da população de um mundo traumatizado pelo conflito e temeroso (não sem razão, mostraria a história) por um novo embate. 

Em 1931, Remarque iniciou a publicação, também e folhetim, de “O Caminho de Volta”, em que retratava as frustrações dos que regressaram das frentes de luta. Por causa do seus livros, teve de sair da Alemanha, quando os nazistas chegavam ao poder, em 1933, acusado de contar mentiras em seu mais famoso romance. E viu toda a sua obra ser proibida no país. Exilou-se primeiro na Suíça. Depois, mudou-se para os Estados Unidos, onde escreveria outras narrativas de sucesso contra as guerras: Três Camaradas (1937), Náufragos (1941), Arco do Triunfo (1946). Deixou também um romance póstumo, “Sombras do Paraíso”, publicado em 1971. Deixou as imagens de um escritor de coragem exemplar e de um artista corajoso que, mesmo contrário às armas, nunca poderá ser chamado de covarde.


Comments

Uma resposta para “[62 de 100] O mal de todas as guerras, segundo Erich Maria Remarque”

  1. Avatar de Carlos Cabús Oitavén
    Carlos Cabús Oitavén

    Um trecho que acho comovente e que é válido não só para a guerra retratada no romance:

    “E, mesmo se essa paisagem de nossa juventude nos fosse devolvida, mal
    saberíamos o que fazer dela. As forças temas e secretas que suscitavam não
    podem mais renascer. De novo, poderíamos permanecer e passear neste cenário;
    lembrar-nos-íamos dele e ama-lo-íamos; ficaríamos comovidos ao vê-lo, mas
    seria o mesmo que olhar a fotografia de um companheiro morto: as feições são
    suas, os traços são seus e é o seu rosto; são os dias que passamos juntos que
    ganham uma sombra de vida na nossa memória, mas já não é mais ele.
    Nunca mais poderemos participar dessas cenas como antes. Não era o
    reconhecimento de sua beleza nem o seu significado que nos atraíam, mas uma
    comunhão, a harmonia de uma fraternidade com as coisas e os acontecimentos da
    nossa existência, que nos isolava e fazia do mundo de nossos pais algo de
    incompreensível; de alguma forma, nós nos deixávamos subjugar por
    acontecimentos e nos perdíamos neles ― as coisas mais insignificantes
    terminavam infalivelmente às portas do infinito… Talvez fosse apenas o privilégio
    de nossa juventude; ainda não tínhamos vislumbrado nenhum limite e jamais
    admitíamos um fim; tínhamos a esperança no sangue, que nos identificava com a
    marcha dos nossos dias.”

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