[66 de 100] A sutil ruína do casamento, segundo Paula Fox

paulafoxEm 1968, o mundo pegava fogo além da porta de entrada da casa de Sophie Bentwood, uma mulher de meia-idade, sem filhos, ex-tradutora de francês que estava sem trabalho no momento. Ela e o marido, o advogado Otto Bentwood, mudaram-se havia pouco tempo para o então decadente bairro do Brooklin, em Nova York. Eles passaram a habitar um sobrado grande e confortável, que acabou de ser reformado, cercado por uma vizinhança de maioria negra e hispânica pobre e que habitava cortiços que estavam na mira da especulação imobiliária – uma estratégia que fazia parte dos planos da Prefeitura de mudar a paisagem local e afastar a criminalidade. Sophie e Otto eram exemplos de brancos refinados que deveriam prioritariamente ocupar o lugar. Eles e seus amigos, intelectuais que gostavam de falar de alta cultura, como literatura, por exemplo. O que os dois não percebiam era que dentro daquele conforto o mundo dos dois estava desmoronando. 

Ambos foram parar ali, em parte, porque os negócios não andavam bem, depois que Otto rompeu com o sócio do escritório, um velho amigo. A Sophie pouco parecia restar que não o tédio e a solidão, amenizados pelas voltas que ela gostava de dar pela cidade. Sentia-se vazia, sozinha, sem objetivos em sua existência que, certamente, não admitiria ser medíocre. A história de “Desesperados”, romance inesquecível da escritora americana Paula Fox, que completa 91 anos em 2014, bem poderia ser a trama de um dos filmes do diretor americano Woody Allen. Mas sua narrativa foi escrita uma década antes de ele começar a fazer filmes sérios sobre relacionamentos e conflitos na cidade de Nova York. A ideia não poderia ser mais simples, mais cotidiana. Seus personagens também. O tempo da narrativa também é delimitado e curto: está centrado em só um fim de semana, embora tenha desdobramentos um dia depois. 

Sua deflagração vem no momento em que Sophie ofereceu um pouco de leite a um gato de rua que, ao invés de mostrar docilidade, revelou-se hostil e feriu com garras e dentes uma de suas mãos. O que poderia ser apenas um acidente, tratado com alguma pomada, transformou-se em paranoia. Uma sensação crescente de medo toma conta de Sophie e ela passou a achar que pode ter contraído raiva, apesar de resistir aos muitos conselhos que recebeu para ir ao pronto-socorro mostrar o ferimento ao médico. Esse estado emocional desestabilizado da protagonista se tornou um catalisador para a explosão de sensações e emoções do que até então parecia seu mundinho fechado e protegido em que estavam presentes o casal e seus frequentadores, com estantes cheias de obras clássicas, uma cozinha de aço inoxidável nova em folha e uma Mercedes estacionada na calçada. 

Os Bentwood, na verdade, aprisionaram-se em um universo de alienação à margem das lutas pelos direitos civis de negros e mulheres, contra a guerra do Vietnã e pela liberdade sexual e do uso de drogas pregados pela contracultura. Por isso, o premiado escritor e professor de literatura brasileira Cristóvão Tezza, ao resenhar o livro, observou que há na história “uma persistente corrosão do espaço em que vivem Sophie e Otto”, habitado também por bêbados que deixam seus vômitos nas calçadas, pessoas que atiram pedras nas janelas, pobreza agressiva, a crescente presença dos negros e o sentimento azedo de culpa da elite branca. “Vive-se a percepção ambígua de que o ideário da liberdade (estamos em 1968) está saindo do controle, (…) sente-se a degradação do espaço público e o pudor de expressar o medo, quase como se eles estivessem ‘tendo o que merecem’”. Era o que se poderia definir como o conforto cercado pela agressividade do mundo externo.

Por outro lado, como representantes de uma classe média amadurecida sob outra perspectiva,  Otto e Sophie talvez se sentissem velhos demais para participar do ambiente de rebelião social que os cercava. No entanto, mostravam-se jovens o suficiente para não deixar de se sentir afetados por essas transformações. Essa aparente simplória história do cotidiano, no entanto, transformou-se em um exercício literário raro na literatura americana, em que Paula Fox se mostrou uma narradora vigorosa e rigorosa, precisa tanto na construção do texto quanto do enredo. O que ela queria mostrar era que a vida dos Bentwood como casal estava desmoronando e eles não pareciam se dar conta do desespero que tomava conta deles. Uma situação tão comum a milhões de pares em todo o mundo. Ao invés de provocar essa ruptura com algo extraordinário, ela preferiu fazê-lo a partir de um acontecimento banal, aparentemente sem qualquer importância. Assim, a mordida do gato desencadeou um processo de pânico crescente que desaguaria no gélido vazio de sua existência. Sophie seguia sua rotina de fim de semana, enquanto precisava lidar com um inchaço doloroso na mão e o medo de ter contraído raiva. 

Ao fazer como que ódio  e ressentimentos anônimos explodissem aos poucos entre seus elegantes, porém amargos personagens, enquanto Nova York e seus arredores experimentavam a decadência urbana e suas incoerências sociais, Paula Fox construiu um romance irretocável. Com poucos personagens, espaço delimitado de tempo e de espaço – que mais parece um confinamento –, a escritora explorou com precisão a arte de narrar. Não por acaso, seu colega e admirador Jonathan Franzen – autor de “As Correções” (2001) e “Liberdade” (2011) – ficou tão impressionado, que escreveu: “Indiscutivelmente um grande livro, rigorosamente estruturado e brilhante a cada linha.” David Foster Wallace (1962-2008), autor de “A Piada Infinita”, não ficou menos entusiasmado: “Um marco fundamental do realismo do pós-guerra. Uma obra sólida, de prosa tão lúcida e refinada que parece mais esculpida que escrita”. 

Paula Fox tem uma história de vida pessoal singular. E de escritora também. Nova-iorquina de nascimento, ela atravessou uma infância difícil, após ter sido deixada ainda bem pequena em uma instituição de caridade, quando a economia americana começava um processo grave e longo de depressão, no final da década de 1920. Os primeiros anos foram divididos entre a casa da avó espanhola e a família de um pastor protestante que a acolheu. Depois de passar por diversos empregos, aos 43 anos de idade, começou a escrever. A experiência resultou em seis romances densos e hoje elogiadíssimos e com estrutura semelhante – quatro deles publicados no Brasil pela Companhia das Letras e pela Record, “Desesperados” (2007), “Pobre George” (2009), “A Costa Leste” (2010) e “Os filhos da viúva” (2011) –, duas narrativas autobiográficas e 22 livros infanto-juvenis, que lhe renderam prêmios importantes como o Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infanto-juvenil. 

A escritora só seria redescoberta como autora de livros adultos em 1991, quando tinha 68 anos de idade, por Franzen, na época professor residente na colônia de criação artística Yaddo, em Saratoga Springs, Nova York. Por causa de suas atividades acadêmicas e pela curiosidade como leitor, por acaso, ele encontrou no sebo um exemplar de “Desesperados”, de 1970, o segundo romance de Paula para leitores maduros, sobre o qual nada lera ou ouvira falar. O motivo ele não demoraria a descobrir. Apesar da qualidade do texto, a autora fora ofuscada pela sua reputação como escritora para crianças. Fascinado, pensou adotar o livro como discussão em sala de aula, mas soube que tinha poucas cópias na biblioteca de Yaddo e a edição estava esgotada havia décadas. Em um artigo sobre literatura para a revista “Harper’s Bazar”, de abril de 1996, ele mencionou a autora várias vezes como exemplo de leitura a ser redescoberta. O editor Tom Bissell se impressionou com o ensaio e localizou Paula Fox. Logo seus livros voltaram às livrarias e ela pode usufruir do merecido reconhecimento.


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