[69 de 100] A liberdade é mais que uma calça jeans, segundo Roberto Freire

freireO primeiro romance do psicanalista Roberto Freire (1927-2008), “Cleo e Daniel”, está para a literatura o que o filme “São Paulo S.A.”, de Luís Sérgio Person (1936-1976), representa para cinema nacional e a história da capital paulista na década de 1960. Ambos são radiografias febris da maior cidade brasileira, logo depois do golpe militar: intensas, angustiantes, vibrantes e, essencialmente, formam hoje dois tratados fundamentais para se compreender a época. Tratam-se de obras-primas por excelência. Sucesso instantâneo de vendas, Freire publicou seu livro antes de se tornar um dos grandes repórteres da revista “Realidade”, marco do jornalismo inovador da década de 1960. Tornou-se, de imediato, uma obra transgressora por diversos motivos, que precisam ser relacionados, pois a obra provocou reações entusiasmadas e de condenação com a mesma intensidade. 

Quando “Cleo e Daniel” chegou às livrarias, havia se passado apenas quatro anos desde que a pílula anticoncepcional começara a ser vendida no Brasil. A novidade causou tanto escândalo que quase resultou em guerra santa, por supostamente atentar contra as leis de Deus, ao impedir a procriação. Não só isso. Em 1963, Norma Bengel causou tremores de 9 pontos na Escala Richter ao aparecer completamente nua com seu corpo descomunal no filme “Os Cafajestes”, de Ruy Guerra. O feminismo nascia e a revolução sexual do Ocidente tentava romper as baionetas da ditadura militar que nascia no Brasil – e em outros países latino-americanos. Os hippies pregavam paz e amor, movidos a todo tipo de drogas alucinógenas, principalmente maconha e LSD. Foi esse contexto de grandes rupturas que Freire explorou em seu romance, uma alucinada história de amor que foi reduzida ou rotulada por alguns críticos como obra pornográfica. Não era. Puro preconceito. 

A obra foi escrita com toda a crueldade possível e muita raiva, segundo escreveu o próprio autor na contracapa. “Para que fosse um depoimento corajoso e sincero. Sem perdão. Romance violento e cru, como as coisas livres à luz do sol. Por isso resultou numa história de amor: caçada a dois adolescentes que o ressuscitam na cidade habitada por homens ainda vivos para a vida e há muito mortos para o amor”, acrescentou. Até chegar à história do jovem casal, entretanto, o narrador, um psicanalista em crise chamado Rudolf Flugeman, recorda seus amores, amizades e relacionamentos, enquanto mostra que tem dificuldades para se situar em um mundo turbulento e delirante. Do seu círculo de amizade fazem parte as ex-namoradas Fernanda, Beatriz e Madalena – cujo amante negro chamava-se Benjamin, um sujeito bem dotado em vários sentidos, vindo de Salvador e tradutor de oito idiomas, tem relativa importância na trama. 

Rudolf leva uma vida caótica, envolto com seus pacientes. Ele costuma frequentar um prostíbulo na região do bairro da Luz, centro antigo de São Paulo, perto da Boca do Lixo. Seu ponto preferido é o Hotel dos Viajantes, da prostituta francesa Gabrielle. Ali, convive com mulheres, é amigo da proprietária e do porteiro. Até que Cleo e Daniel entram na história . Ambos têm 15 e 17 anos, respectivamente. O ruivo Daniel só aparece pela primeira vez na página 80 da edição original, apresentado durante uma carona por um paciente homossexual, Marcus, que é apaixonado pelo garoto. Depois de subirem a Rua Augusta, no cruzamento com a Avenida Paulista, Marcus bate o carro com violência em um ônibus e o amigo fica ferido e desacordado. Rudolf nada sofre. 

Cleo se chama Cleonice e é filha de um senador. Diz que quer ser gueixa e se recupera de um aborto imposto pela mãe. Cabelos penteados em forma de capacete, loira de olhos azuis, elegantemente bem vestida e belíssima, aparece para Rudolf quando sua mãe o procura em seu consultório para tratá-la. Por coincidência, seu namorado é o mesmo Daniel ferido no acidente, visto como um jovem revoltado e agressivo. Ao se encontrar com Cleo, eles iniciaram um romance repleto de sonhos de liberdade, sexo e os conflitos que atormentam os jovens. O psicanalista está fechando o consultório e diz a Cleo que não pode atendê-la. Mas que será seu anjo da guarda. Aos poucos, passa a se envolver com o casal, que o encanta por sua paixão e jeito rebelde. 

A experiência permite a Rudolf avaliar o choque de gerações entre esses garotos e os pais, que resulta nas mais diversas situações, pois os mais velhos não conseguem lidar com garotos permissivos demais sexualmente – e que querem se descobrir e não seguir um manual de instruções criado pela sociedade ao longo de séculos. São tempos de grandes turbulências e questionamentos morais e de comportamento que vão além das grandes cidades brasileiras. Nos EUA, por exemplo, a revolução sexual se dissemina, enquanto no Brasil o movimento estudantil é proibido pela ditadura e ser artista passava pelo fato de ser também um marginal. Nesse contexto, portanto, a homossexualidade, mais do que nunca, tinha tratamento de algo abominável, que acabavam em hospitais psiquiátricos e tratamentos de choque. 

Nesse primeiro romance, Freire se revela um escritor surpreendente, claramente influenciado pela falta de pudor dos romances de Henry Miller (1891-1980), que se tornaram cults naqueles anos de revolução sexual e contracultura – a primeira edição de “Tropico de Câncer”, seu livro mais censurado, saiu no Brasil em 1963. Mesmo assim, ele apresenta uma visão nova, original e verossímil da juventude daqueles confusos anos de 1960, escrita de modo solto, descolado, atraente, por sua poética e sensual em sua prosa bem humorada. Graças a “Cleo e Daniel”, seu talento literário foi merecidamente consagrado pelo estilo e pela qualidade. Além da escrita ágil, dos parágrafos curtos, seus personagens são inteligentes e fazem interessantes reflexões sobre o momento, sem qualquer freio. 

O autor se definia, na época, como psicanalista e anarquista. Inspirou-se na tragédia “Daphnis e Chloe”, do poeta romano Longus, para escrever sua história – o narrador cita essa obra o tempo todo, que está sendo traduzida por seu amigo Benjamin. A falta de pudores do livro em falar de sexualidade podia ser exemplificada no modo como o narrador fala do gozo das mulheres no ato sexual, até então um tabu ou mesmo um mito. Uma das personagens, ao ter um “orgasmo completo” nos braços de um pintor famoso na França, comparou à estranha sensação de prazer que experimentou na infância quando quase morreu de pneumonia, aos seis anos de idade. Ou como no momento em que Rudolf tinha duas namoradas, que cordialmente se odiavam, pois habitavam juntas em um apartamento. 

A psicanálise é um suporte importante para o desenvolvimento de “Cleo e Daniel”, além da visão de mundo que o autor tinha para avaliar o que estava acontecendo por meio de seu altergo Rudolf. Freire expõe sua posição libertária sobre o sexo e as relações, longe da culpa religiosa milenar que tem conduzido o tema no ocidente ou do preconceito, no caso da homossexualidade. Dai o aspecto subversivo e a libertinagem que seus críticos viram na história. Não é a disciplina da psicanálise em si, mas o jeito observador e treinado pela ciência, em combinação com suas convicções sobre as transformações de comportamento e das relações que aconteciam naqueles primeiros cinco anos da década de 1960. 

Além de bem amarrado de modo magistral, com tipos interessantes e cativantes, “Cleo e Daniel” é quase uma comédia de costumes, com suas tiradas refinadas que remetem aos ótimos filmes de Domingos de Oliveira da época, como “Todas as Mulheres do Mundo”. Há também uma série de auto-referências. Em uma passagem, quando Rodolph decide fechar seu consultório, ele transfere seus pacientes para um colega, um tal Roberto Freire, que dispensa a oferta. Um livro que mantém o frescor e preserva o prazer de uma deliciosa viagem a São Paulo da década de 1960, apesar da ditadura iniciada em abril de 1964.


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