[70 de 100] A vida real pode ser fantástica, segundo Murilo Rubião

rubiaoO crítico Antonio Cândido, na carta que escreveu a Murilo Rubião (1916-1991), em 25 de fevereiro de 1967, ressaltou o apreço que tinha por sua ficção. Ele a descreveu como rara, densa, “de um insólito despreocupado que suprime qualquer farol e nos faz sentir como se as leis do mundo estivessem normalmente refeitas”. E observou que os textos do autor mineiro traziam “uma naturalidade admirável”, feita por uma “supernaturalidade”. Na verdade, ele acabara de reler suas histórias muitos anos depois e chamou sua atenção o caráter precursor de muitos aspectos que não se conhecia até então ou que só depois apareceram na literatura brasileira. Havia em seus contos “certo tipo de fantástico meticuloso e óbvio que lembra o tom que depois viemos encontrar em Borges; ou em algum nouveau Roman”. Assim, ao adotar o gênero realismo mágico ou fantástico, ele se tornou um caso único e isolado, não classificável em qualquer história literária. 

Rubião nasceu em Carmo de Minas, mas passou a maior parte da vida em Belo Horizonte. Advogado, tornou-se funcionário público e chegou a ser chefe de gabinete quando Juscelino Kubistchek (1902-1976) era governador. Ocupou o posto por cinco anos. Em seguida,trabalhou como adido na embaixada brasileira em Madri. Teve atuação importante como jornalista ao criar, em 1966, o “Suplemento Literário”, do “Diário Oficial de Minas Gerais”, considerado um dos melhores do país em seu tempo. Entre os momentos de descanso dessas intensas atividades que ele criava suas histórias, com estilo próprio, que procurou aprimorar ao longo dos anos. De muitos anos, pois levou 26 para concluir “O Convidado”. Escreveu exclusivamente contos e o seu perfeccionismo fez com que deixasse apenas 50 narrativas curtas, publicadas em jornais e revistas e que saíram em sete livros publicados entre 1947 e 1990 – recentemente, 33 deles foram reunidos pela Companhia das Letras em três volumes. 

“O Pirotécnico Zacarias”, que dá título ao livro lançado em 1974, é, sem dúvida, o mais famoso – e exemplar – de sua obra singular e inovadora na literatura brasileira. Por toda a vida, Rubião negou que tivesse sofrido influência do tcheco Franz Kafka (1883-1924) para criar suas histórias, que flertavam com o absurdo – em 1947, quando saiu o seu “O Ex-Mágico”, Kafka começava a ser lido no Brasil a partir de traduções argentinas. Muito antes dos primeiros autores latino-americanos explorarem o real mesclado com o fantástico, como o cubano Alejo Carpentier (1904-1980) e o mexicano Juan Rulfo (1917-1986), ele já criava histórias próximas disso, mas com peculiaridades e originalidade. O brasileiro foi apontado como um autor que lançou novos olhares sobre temas consagrados da literatura, como o desejo, a morte, o amor e a falta de sentido do mundo moderno. Havia a marca de que sempre ocorria a falta de espanto dos narradores e das personagens diante das situações extraordinárias que presenciam, de modo a obter um perfeito equilíbrio entre essas dimensões fora da normalidade. 

Assim como Graciliano Ramos (1892-1953), seu perfeccionismo na busca pela precisão fez com que Rubião reescrevesse exaustivamente seus textos, ao invés de construir uma obra extensa. Gostava, por exemplo, de buscar na Bíblia – era agnóstico – citações, que usava na aberturade todos os seus contos. A intenção era apontar, de maneira simbólica, a temática a ser explorada em cada um. Na narrativa, em si, ele assumia a função crítica, no sentido de usar o sobrenatural e o fantástico como recursos da imaginação para remeter o leitor aos conflitos de sua própria existência. Desse modo, desvendava os dramas da natureza humana – viver, dizia ele, era uma experiência sem solução e, daí, seus desfechos sem felicidade. Nos contos de Rubião, os solitários personagens parecem em eternas buscas e contínuos desencontros. Outro aspecto que encanta em sua obra é a capacidade dele ser sutil ao ambientar o fantástico em meio ao real sem excessos ou exageros, de modo a deixar as histórias próximas do possível. Como se o extraordinário fizesse parte do cotidiano. 

Talvez esses aspectos explicam porque, somente em 1974, quando ele tinha quase 60 anos de idade, seu nome ganhou projeção e reconhecimento. Naquele ano, “O Pirotécnico Zacarias” vendeu mais de 100 mil exemplares pela Editora Ática, lançado pelo editor Jiro Takahashi, que teve dificuldade em convencê-lo a deixar publicar a coletânea. Na história que dá nome ao livro, Zacarias surge em uma conversa sobre se ele teria morrido ou não e se de fato merecia a fama conquistada. Ele mesmo é o narrador, que faz uma série de reflexões sobre sua situação de “morto-vivo” e como os antigos amigos e pessoas conhecidas fogem dele quando o encontra nas ruas. Essa fuga não esclarece o fato e alimenta o mito. “Em verdade morri(…). Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente“. Zacarias começa, então, narrar os fatos que o colocaram naquela situação, quando em uma noite, voltando de uma festa, fora atropelado. A partir daí, o narrador revive momentos, como em flashback, de sua infância, lembranças de uma professora invadem sua memória. É quando o grupo de jovens, moças e rapazes, discute sobre o que fariam com o seu cadáver. 

Em “O Ex-Mágico da Taberna Minhota”, que fez parte de seu primeiro livro, o narrador se descreve como uma pessoa que percebe sua existência, já em idade madura,quando se olha no espelho de uma taberna. Ele começa, então, a fazer mágicas involuntariamente, ou seja, objetos e seres vivos começam a aparecer retirados de seus bolsos, chapéus ou por simples movimentos de suas mãos. O conto “Bárbara” traz o relato absurdo de um casal cuja relação conjugal é pontuada por uma enorme discrepância entre os sentimentos entre ambos, enquanto Bárbara não para de engordar, até atingir dimensões gigantescas – teria inspirado a personagem da novela “Saramandaia”, de Dias Gomes (1922-1999)? O protagonista de “O homem do boné cinzento”. Anatólio vive um drama contrário ao de Bárbara: emagrece até se transformar em uma minúscula bola negra – a obesidade e a magreza são elementos do grotesco presente na obra de Rubião. “Flor de Vidro” mostra o terror vivido por Eronides sem se ter uma explicação conveniente para isso. Em “O Convidado”, Alferes precisa chegar a uma misteriosa festa a fantasia para a qual é convidado, ele não consegue mais se desvencilhar dela, nem achar o seu caminho de volta. “Ofélia, meu cachimbo e o mar” traz uma conversa entre o protagonista e uma silenciosa mulher, que parece não se interessa pelo diálogo. 

O crítico, ensaísta e tradutor José Paulo Paes (1926-1998) observou que os contos de Murilo Rubião são uma das manifestações mais originais da chamada geração do pós-guerra – que incluiu nomes como Dalton Trevisan, Clarice Lispector (1920-1977) e Osman Lins (1924-1978), entre outros. Um aspecto que ele destacou “é a visível predominância de histórias de ambiência trágica ou opressiva, nas quais mais bem se patenteia aquela angústia existencial que faz dele um representante típico da nossa literatura de pós-guerra, com sua indelével marca existencialista”. Outro ponto relevante, em sua opinião, “é o seu nunca desmentido recurso” do contraste entre o real e o fantástico. Ou melhor, entre o natural e o sobrenatural, já que tudo quanto possa manifestar-se em desobediência às leis da realidade pertence, por definição, ao domínio da sobrenaturalidade. Algo que continua a surpreender, em todos os seus contos, tão vigorosos.”Ele nos transporta para além de nossos limites, sem, entretanto, jamais perder pé no real e no cotidiano”, avalizou o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).


Comments

2 respostas para “[70 de 100] A vida real pode ser fantástica, segundo Murilo Rubião”

  1. Avatar de Rosane Serro
    Rosane Serro

    Caro Gonçalo,

    Tenho acompanhado com grande interesse seus textos – sempre brilhantes – na Coluna “Biblioteca Maldita”. Entretanto, esse me causou espécie… Por que você incluiu Murilo Rubião sob a retranca da coluna? Talvez por ele não ter alcançado a popularidade de seus colegas de geração?

    E uma outra questão: a seleção dos títulos analisados se dá por conta de suas reedições ou você também resenha autores de obras esgotadas? Neste caso… Conhece Augusto Meyer?

    Um grande abraço e parabéns por despertar nossa sensibilidade nesses tempos tão áridos.
    Rosane Serro

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