[72 de 100] A relação entre os mortos e os vivos, segundo Juan Rulfo

rulfoComo é possível que apenas por ter escrito um único romance e alguns contos alguém passa a ser considerado o escritor mais aclamado da literatura de seu país? Se não bastasse, trata-se de uma história curta, quase uma novela, com pouco mais de cem páginas. Acontece assim com o escritor mexicano Juan Rulfo (1917-1986), autor de “Pedro Páramo”, lançado em 1955 e que continua a ser uma das mais fascinantes, inventivas e reflexivas obras já escritas em todos os tempos sobre a natureza da vida e da morte, da existência, enfim, e de sua brevidade. Ele o faz ao contar a história dede Juan Preciado, que chega à fictícia vila de Comala, no estado de Colina, onde espera encontrar seu pai que não conhece e tentar uma reaproximação, apenas para atender ao último desejo de sua mãe antes do último suspiro. Ela o orienta a não pedir nada a ele, mas cobrar o que era devido a ela e ao filho. “O que tinha obrigação de me dar e nunca me deu… O esquecimento em que nos manteve, meu filho, cobre caro.” 

Rulfo não deixa clara a época em a narrativa se passa, mas dá a entender que acontece no começo do século XX, entre a Revolução Mexicana (1910-1917) e à Guerra Cristera (1926-1929). Sabe-se que algumas pessoas da família do escritor foram vítimas da violência revolucionária cujo epicentro foi seu estado natal, Jalisco. Por isso, seus escritos frequentemente remetem aos dois fatos. Preciado faz, enfim, uma viagem de encontro e de confronto, pois pretende fazer um acerto de contas com o passado e, por que não, com o futuro. No final de agosto de um ano qualquer, ele chega a Comala e se depara com uma cidade tão quente e seca que ele pensa ter entendidoao ouvir um dito popular: “quando as pessoas morrem e vão para o inferno, eles retornam em um cobertor.” Era bem mais que uma expressão de realce. Logo na primeira conversa com um dos moradores, o rapaz tem uma grande decepção. Eduviges Dyada, velha amiga de sua mãe, conta que Pedro Páramo morreu há muito tempo. Mas a conversa toma um rumo estranho, quando Eduviges diz a Juan que sua mãe lhe havia dito o dia que ele viria. Como assim, se ela estava morta? 

Mesmo assim, ele não faz qualquer questionamento e vai embora do local. Quer saber de outros moradores sobre a vida de seu pai e sua herança. Descobre que todos, de alguma forma, foram ligados ao falecido Páramo, proprietário da fazenda Meia Lua, a maior da região. Muitos, inclusive, são filhos naturais dele. À medida que conhece as pessoas, conclui que todos os habitantes estão todos mortos, como a cidade fosse um gigantesco cemitério, habitado por fantasmas – cada um com suas desesperadas histórias de almas atormentadas para contar. O impacto é tamanho que ele morre aterrorizado. Após ser enterrado, os falecidos irão lhe contar a vida de seu pai e de si mesmos. E são essas trajetórias de vida que fascinam o leitor, com narrativas poderosas, marcadas por muita violência, luxúrias, corrupções e tragédias. 

Aos poucos, o protagonista começa a ficar confuso e a achar que está desaparecendo gradualmente entre esses fantasmas – ou já teria se tornado um deles, sem perceber seu real estado de vivo ou de morto? Essa sensação crescente de conflito o leva a temer que possa ficar para sempre entre os mortos. Ele “acorda” e descobre que está compartilhando um túmulo com uma mulher, que passa a lhe fazer queixas, enquanto ele ouve os murmúrios vindos dos habitantes de sepulturas próximas. Preciado, então, dá voz a diferentes narradores que contam suas comoventes histórias em linguagem simples, enquanto tudo parece real à sua volta, com sensações de intenso calor e muita poeira, além de chuva constante e lama a lhe borrar os pés. Ele é informado que o pai era um homem rude e cruel, dono da maior parte das terras da região. Tinha poder de sobra. Até dava dinheiro e emprestava alguns homens para um movimento rebelde que invadia fazenda e realizava saques. 

Essas conversas lhe permitem ter uma noção mais completa do caráter de Pedro Páramo, lembrado como “erva daninha” que recorre à violência para se impor. Suas vítimas iam desde uma criança miserável à pessoa mais poderosa de Comala. Conhece também a origem da riqueza do genitor e a relação com sua mãe. Páramo herdou do pai uma fazenda arruinada e se casa com Dolores Preciado por interesse: pretende se apoderar de sua fortuna e, assim, cancelar suas dívidas com a família Preciado. Após alguns anos, ele lhe aplica um golpe: convence-a a visitar a irmã e nunca mais a manda buscar. Quando idoso, casa-se com Susana San Juan, seu amor de infância que havia deixado a cidade, mas retornara viúva e louca. Depois que Susana morre, os habitantes de Comala, ao ouvir os sinos, pensam se tratar de alguma festa e se entregam à comemoração, o que lhes vale a ira de Pedro Páramo. Seu castigo é o mais cruel possível: cruza os braços e deixa a cidade “morrer de fome”. 

Rulfo pretendia, sem dúvida, mostrar que o verdadeiro personagem do livro é a própria Comala, que passa a ser habitada por mortos-vivos mas que pode ser também um purgatório, como chega a insinuar. Comala adquire gradativamente as características de Pedro Páramo e, quando este morre, o lugar morre com ele. Por tudo isso, poucas vezes a morte fascinou e foi tão aterrorizante quanto nessa obra-prima eterna. Tudo é construído com habilidade e uma fluência quase natural, sem excessos de adjetivos, substantivos, textos ou de ideias, que forma uma história única na literatura universal, amarrada com um final inesquecível. Tanto que, para Gabriel Garcia Marquez, seu livro “Cem Anos de Solidão”, publicado pela primeira vez em 1967, não teria existido sem “Pedro Páramo”. 

Considerado uma das contribuições mais significativas na ficção latino-americana no século XX, “Pedro Páramo” não tem divisão em capítulos. O livro foi estruturado com uma sequência de fragmentos e sem obedecer a qualquer sequência temporal. A estrutura, descrita como intrincada e inovadora, foi, certamente, a responsável pela resposta inicial negativa dos leitores, mas logo assegurou a perene influência e a influência da obra sobre os escritores dos países latino-americanos. Rulfo estabeleceu a idéia de que a morte se sente como realidade cotidiana. Rulfo seria, por isso, em parte, reconhecido como um contador de histórias dos mais brilhantes. Sua prosa é descrita como limpa e afiada, que rendeu elogios de escritores como Jorge Luís Borges (1899-1986), Carlos Fuentes (1928-2012), Octavio Paz (1914-1998), Günter Grass (1927) e Susan Sontag (1933-2004). Mesmo assim, teve recepção fraca do público por muito tempo. Dos 2 mil exemplares da primeira edição, apenas a metade foi vendida. Uma provação a que muitos grandes escritores tiveram de passar. 

Costuma-se dizer que Rulfo é o inventor do realismo fantástico. Não por acaso, ele disse que seu livro é “um diálogo entre um morto e os mortos”. Outros defendem o nome do cubano Alejo Carpentier (1904-1980), ao publicar “O Reino Deste Mundo” (1949). Não teria sido, porém, o brasileiro Murilo Rubião (1916-1991), com os contos extraordinários de “O Ex-Mágico”, de 1947? De qualquer modo, ao contrário de Carpentier, celebrado entre as elites intelectuais, García Márquez teve o mérito de estabelecer uma “escola” do gênero e, assim, democratizou o estilo sem se desviar do modelo original, mesmo quando a fórmula pareceu esgotada e uma nova geração de leitores que se alheou das peculiaridades formais que nos anos 1960 fizeram a fortuna da literatura hispano-americana. A Rulfo, porém, cabe também o papel de o mais influente, aquele que mostrou as potencialidades de além do realismo “real”, digamos assim.


Comments

Uma resposta para “[72 de 100] A relação entre os mortos e os vivos, segundo Juan Rulfo”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.