[84 de 100] O bizarro entre os vivos e os mortos, segundo Evelyn Waugh

IMG_0038Apelidado pelo jornal inglês de “The Sunday Times” de “o mestre do humor negro”, o escritor londrino Arthur Evelyn St. John Waugh (1903-1966) assinava seus romances como Evelyn Waugh (1903-1966). Quem foi ele? Para os fãs de televisão menos avisados, trata-se do autor de “Brideshead Revisited”, que deu origem à série de TV produzida em 1981 pela Granada Television. Nos meios literários, porém, ele é considerado um dos maiores satiristas ingleses. Há quem o chame de o maior escritor de seu país no século XX. Tanto em qualidade quanto em volume, pois seus livros passam de uma centena. Se não bastasse, seu irmão Alec também alcançou grande notoriedade – com romances como “A Cilada Erótica” e “À Sombra dos Minaretes” –, embora o tempo o condenasse ao esquecimento. Para o pai, porém, Alec, o filho mais velho, era seu escritor preferido. 

Antes de virar escritor, Evelyn Waugh foi professor e seguiu outras profissões, sem conseguir se manter nos empregos por muito tempo por causa da bebida – consumia muito gim e tinha ímpetos autodestrutivos. Por isso, em 1925, aos 22 anos, resolveu se matar por afogamento. Quando nadava mar adentro, a nado, de uma praia do País de Gales, mudou de idéia por causa de um fato curioso. Ao seu estilo tragicômico, ele desistiu depois de ser queimado por uma água-viva. Na verdade, nunca ficou claro se essa história foi criada por ele ou inventada como parte de seu anedotário. Ele contou que foi salvo pela literatura e pelo catolicismo, religião a que se converteu em 1930, depois de se divorciar da primeira mulher – seria apontado depois como um marido difícil e um pai cruel. 

Convocado para lutar na Segunda Guerra Mundial, Waugh enfrentou a morte nas trincheiras em Creta e na Iugoslávia. Voltou ileso e a experiência se tornou fundamental para a composição de seu romance “A Espada de Honra”. Embora estivesse mais para cético e esnobe em relação à aristocracia inglesa, Waugh também seguiu na contramão do esquerdismo que dominou a vida cultural britânica no pós-guerra, voltado para o comunismo da União Soviética, o que lhe rendeu a imagem pública de um escritor reacionário e raivoso. O tempo, no entanto, reforçaria a ideia de que não passava de um franco atirador independente e crítico, quase suicida. Isolado, sentia-se à vontade para tirar sarro de tudo e de todos, como se vê nos romances “Um Punhado de Pó” e “Memórias de Brideshead”, em que faz uma crônica ácida e implacável das elites dominantes de seu país. Por isso, a crítica inglesa – aristocrática e em nome de seus leitores – disse que seu método literário consistia em submeter todos os valores de seu país “às rasteiras da ironia”. 

Mas é outro livro seu, “O Ente Querido – Uma Tragédia Anglo-Americana”, de 1948, que merece destaque como exemplo acabado dessa visão tão subversiva e contestadora de Waugh. Um de seus melhores trabalhos, ele estende seu ácido olhar aos Estados Unidos, então um exemplo de vida a ser seguido pelas nações ditas democráticas, e a todo mundo, pois se volta para a essência do ridículo do ser humano. Poucas vezes, o comportamento das pessoas foi tão exposto de modo a enfatizar sua estupidez. Ele era dono de um humor de primeira linha, refinado como raramente se viu, ao contrário da maioria das sátiras, que se empenham para ser lidas como tal, o escritor trata de situações patéticas como normais. 

Muito antes da série televisiva “A Sete Palmos”, ele tratou do mundo dos vivos e dos mortos ao contar a hilariante história de amor entre um funcionário de crematório (para animais de estimação) e uma maquiladora de cadáveres (humanos). Em plena Hollywood do pós-guerra, o jovem poeta inglês Denis Barlow desembarca nos EUA, não consegue ocupação na promissora indústria do cinema e acaba como cremador de cães, gatos, papagaios e até bodes, em um cemitério de animais chamado Campo de Caça Mais Feliz. Encarregado de organizar o enterro de um amigo, Barlow se apaixona pela americana Aimée Thanatogenos, cuja profissão é pouco comum: maquiladora de defuntos no Parque Memorial das Clareiras Sussurrantes. 

A garota é uma pobre órfã, que se revela desorientada e com certa inclinação para as artes. Tem uma queda especial para buscar conselhos amorosos e outras manias meio estranhas: busca solução de seus dilemas amorosos por meio de cartas trocadas com o guru meio canastrão chamado de Brahmin, autor de famosa coluna sentimental de um jornal. A história prossegue com a disputa pelo amor de Aimée entre cremador e seu rival, o americano conhecido como Joyboy, que também é maquilador de mortos e admirado pela dedicação em um trabalho tão peculiar. Mostra-se ainda um exemplo de filho extremamente devotado. A jovem se vê dividida e indecisa entre o “amor inglês” de Denis e do “amor à americana” de Joyboy, em uma série de situações hilárias, a partir de diálogos brilhantes dos personagens. Essa foi a forma encontrada por Waugh para criticar a indústria do cinema americano. 

Adaptado para as telas por Tony Richardson na década de 1960, o romance promove um ataque que nada tem de casual porque seu autor conviveu, na vida real, com os chefões de Hollywood, no período em que ali trabalhou. O fato aconteceu durante a adaptação de “Brideshead Revisited” como um filme de amor, para seu desgosto, uma vez que contrariava a essência do livro, de caráter essencialmente religioso. Por outro lado, “O Ente Querido” é tragicomédia no melhor sentido do termo. Waugh se mostra implacável e cruel com todos, ao mesmo tempo em que expõe a obsessão pela padronização e pelo sucesso como um legista a dissecar cadáveres. Para os críticos, a opção de irreverência acaba por esvaziar a vida dos personagens. Por outro lado, enfatiza um estilo que fez dele um dos poucos escritores contemporâneos que soube reproduzir, com maestria de estilo, a graça tipicamente inglesa, sem recorrer a artificialismos ou formalismos literários. 

Em “O Ente Querido”, em especial, a escrita de Waugh mais uma vez se destaca, desta vez tendo como alicerce um enredo formado por personagens que vivem situações bizarras só que, invariavelmente, muito engraçadas. “Sem dúvida alguma, o autor sabe como colocar o humor na hora certa”, diz Cid Knipel, que traduziu a obra para o português. É preciso enfatizar que ele era um grande escritor, cujos romances se mostraram concisos, diretos e inteligentes, sempre pontuados por enfoques cômicos que se alternam entre o sutil e o escancarado. Há quem discorde que Waugh seja um dos maiores escritores britânicos dos últimos cem anos. Inquestionáveis, entretanto, são a elegância da sua escrita, a inteligência e a agudeza do seu sarcasmo. 

Tudo isso se vê com mais ênfase no subestimado “O Ente Querido”, que não é a sua obra mais cultuada. Nesse e nos demais romances, as piadas não são gratuitas e, jamais, soam apelativas ou trazem alguma grosseria ou baixaria. Com seu estilo refinado de lorde inglês, ele dá vida a tipos comuns, em existências tão sem graça que não despertam a atenção de curiosos à primeira vista. Mas basta lhe estender a mão que o leitor adentra no mundo de um escritor que dá um prazer fora do comum, com sua escrita essencialmente irreverente e subversiva.

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