O casal adolescente Jinny e Louis parecem se amar. Susan gosta de Louis. Bernard se magoa ao vê-la beijar Louis, pois ama Susan. No começo, enquanto conversam entre si, comparam suas vidas aos microcosmos de pequenos bichos e insetos à sua volta, como a lagarta que leva a folha verde nas costas, como uma operária, ou a gota de orvalho que está presa à teia de aranha em uma linda manhã de sol. São mundos paralelos e independentes – dos humanos e dos seres minúsculos –, mas que servem de parábolas para os diálogos entre os personagens. Essa introdução do romance radicalmente experimental “As Ondas”, da escritora, ensaísta e editora britânica Virgínia Woolf (1882-1941), é arrebatadora. Conhecida como um dos nomes mais importantes do modernismo europeu, ela ressalta tal posição nesse singular livro, que é mais um exercício de escrita para testar as percepções do leitor e a própria capacidade de criar uma visão onírica do mundo e de seus personagens.
Considerado pela crítica o melhor livro de Woolf, sexto trabalho de ficção seu, foi publicado originalmente em 1931. Mas só ganhou edição brasileira em 1980, pela Nova Fronteira, com tradução de Lya Luft. O livro conta a história da amizade entre seis personagens, três mulheres e três homens, em uma longa passagem de tempo que vai da infância a idade adulta. São eles Bernard, Susan, Rhoda, Neville, Jinny e Louis. A autora construiu uma forma engenhosa de narrá-la, em que cada fala deles – seriam faces de um rosto único? – se expressa como uma “torrente caótica e fabulosa de imagens e palavras que se forma dentro da cabeça em minutos, em segundos”, como descreveu um crítico. Essas vozes, sempre em discurso direto, conduzem o leitor da infância à maturidade, em nove etapas da vida. Assim, percorre o tempo da vida humana, enquanto acontece outro tempo, paralelo, sem personagens, sem fala, antes de cada etapa: uma descrição da viagem que o sol faz ao longo de um dia, e do efeito desse movimento em uma paisagem com mar, no trecho que abre o livro. Ela quer dizer, enfim, que as ondas se quebram sincopadamente e de forma ininterrupta, do mesmo modo como bate o coração.
A tradutora para o francês, a não menos celebre romancista Marguerite Yourcenar (1903-1987), autora de “Memórias de Adriano”, escreveu que “As Ondas” é um livro “com seis personagens, ou melhor, seis instrumentos musicais, pois consiste unicamente de monólogos interiores cujas curvas se sucedem, se entrecruzam, com a firmeza de um desenho que lembra ‘A Arte da Fuga’, de Bach”. Nesta narrativa sonora, prossegue ela, os breves pensamentos da infância, as rápidas reflexões sobre os momentos de juventude e companheirismo confiante parecem os allegros das sinfonias de Mozart. Desse modo, abre, cada vez mais, espaço para os lentos andantes dos imensos solilóquios sobre a experiência, a solidão e a maturidade. “Com efeito, ‘As Ondas’, tanto quanto uma meditação sobre a vida, apresenta-se como um ensaio sobre o isolamento humano”. Esse aspecto consiste de solilóquios falados, que abrangem as vidas de seus autores e são divididos pelas intercessões que detalham uma cena litoral em estágios diferentes em um dia de sol a sol, a partir do raiar do dia.
Woolf, desse modo, procura explorar conceitos de individualidade e da existência em comunidade. Embora cada personagem seja diferente do outro, em seu conjunto, compõem uma gestalt sobre a consciência central, em silêncio. Tornam-se, enfim, algo que, ao ser desenvolver autonomamente, articulam-se- como uma só criatura em busca de si mesma e daquilo que a transcenda. Soma-se a isso o refinamento do texto, marcado pelo lirismo e o poético: “Quando ouvi você chorar, eu a segui, vi quando colocou no chão seu lenço amassado, a ira e o ódio amarrados dentro dele. Mas isso logo passará. Agora, nossos corpos estão próximos. Você ouve a minha respiração. Você vê também o besouro carregando uma folha nas costas. Corre para cá, corre para lá, de modo que, enquanto você observa o besouro, até mesmo seu desejo de possuir uma só coisa (agora, é Louis) oscila como a luz saindo e entrando das folhas das faias”.
Ao comentar a aparente complexidade do romance, o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) disse que na narrativa de Woolf “não há argumento, não há conversa, não há ação.” Essa é uma interpretação que mudou sensivelmente ao longo dessas oito décadas após sua publicação. Claro que costuma ainda ser apontado como um texto de leitura difícil, o que não é verdade. Com alguma concentração e disposição para se acostumar com a estrutura inventiva montada pela autora, o texto flui com certa facilidade depois de algumas páginas. Afinal, mesmo que tenha recebido o reconhecimento unânime dos críticos e de outros escritores desde a sua publicação, não é exatamente uma narrativa convencional. Mas existe certa linearidade temporal, sim, como o alvorecer do dia e seu desenrolar, a observação do recomeço da vida em meio ao orvalho por um grupo de adolescentes.
A autora, nesse instigante romance, leva mais longe as características que marcaram sua ficção como representativa do grupo de Bloomsbury, como ficou conhecido o círculo de intelectuais que, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), posicionou-se contra as tradições literárias, políticas e sociais da Era Vitoriana, na Inglaterra, marcante no século XIX. Deste movimento participaram, dentre outros, importantes escritores como Roger Fry (1866-1934) e Duncan Grant (1885-1978); os historiadores e economistas Lytton Strachey (1880-1932) e John Maynard Keynes (1883-1946); e os críticos de arte Clive Bell (1881-1964) e Desmond McCarthy (1877–1952). Quando começou a esboçá-lo, em novembro de 1928, ela tinha 44 anos e era já a autora aclamada de “Orlando”, “Mrs. Dalloway” e “Rumo ao Farol”, três dos seus mais conhecidos e notáveis romances. Em seu diário, a escritora anotou: “Quero eliminar todo o desperdício, todas as coisas mortas, o supérfluo: dar o momento inteiro, com tudo o que faz parte dele. Digamos que o momento é um misto de pensamento, de sensação, a voz do mar…”
Ainda em referência a “As Ondas”, Woolf ressaltou no mesmo escrito intimista, um aspecto que mostra sua busca pela transgressão literária: “Esse medonho assunto da narrativa realista, avançar do almoço para o jantar, é falso, irreal, meramente convencional. Por que admitir algo na literatura que não seja poesia – até à saturação, mesmo? É isso que quero fazer em ‘As Mariposas’”. Sim, “As Mariposas” foi, entre 1928 e 1929, o título provisório do romance, dessa “tentativa completamente nova” de atuar, de experimentar e ousar no interior da literatura. Depois, quando ela se lembrou “de repente” (a expressão é dela) de que as mariposas só voam durante a noite, mudou o título para “As Ondas”. E, no outono de 1929, começou a escrever o texto final daquela que viria a ser considerada por muitos – Borges preferia “Orlando” – a sua obra-prima.
“As Ondas” é um daqueles livros que deixam o leitor completamente atordoado, como uma anestesia misturada com sono, fome intensa ou mesmo embriaguês. A descrição que Woolf faz do impacto dos primeiros raios de sol sobre as ondas, em que prenuncia o nascimento também da sua história e o despertar dos personagens, é algo absolutamente mágico. Ao final, ela escreve: “A luz incidiu sobre as árvores no jardim, e suas folhas, tornadas transparentes, iluminaram-se uma depois da outra. Um pássaro trinou no alto; houve uma pausa; outro pássaro trinou mais abaixo. O sol aguçou os contornos da casa e pousou como ponta de um leque sobre uma cortina branca, deixando uma impressão digital azul sob as folhas próximas à janela do quarto de dormir. A cortina moveu-se de leve, mas dentro da casa tudo era penumbroso e sem substância. Fora, os pássaros cantavam sua vazia melodia.” E a vida para seu romance está apenas começando, com frescor e desafio de mudar as coisas.
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