[90 de 100] Da capacidade de enganar o leitor, segundo Agatha Christie

Captura de Tela 2014-06-19 às 11.42.12Até chegar à última página do romance, quem lê “O Assassinato de Roger Ackroyd” pensa que se trata de um livro policial convencional: um crime de morte, um detetive, várias pistas e suspeitos e, por fim, o desmascaramento do assassino, muitas vezes acertado pelo leitor. Nada disso acontece nesse caso. Claro que a instigante história segue, cheia de reviravoltas, mudanças o tempo todo de nomes que poderiam ter tirado a vida de alguém. Por fim, entretanto, a autora, a escritora inglesa Agatha Christie (1890-1976), dá um soco no estômago do seu público. Este descobre que estava andando em uma espécie de labirinto de espelhos e que absolutamente tudo que viu até então é falso e ele foi enganado o tempo todo. A sensação de estupefação é inevitável. 

Como alguém pode ter escrito algo tão genial na linha de histórias de detetives, tradição iniciada na primeira metade do século XIX com Edgar Allan Poe (1809-1949) e consagrada por Arthur Conan Doyle (1859-1930)? Talvez “O Assassinato de Roger Ackroyd” seja o melhor romance policial mais original e inteligente de todos os tempos. Não foi por acaso que a solução do mistério tenha sido motivo de grande polêmica junto a crítica ao longo de décadas, devido a seu ineditismo, pelo desprezo às convenções do gênero e por sua capacidade em “burlar” o leitor, que se tornaria uma de suas marcas – método que lhe custou críticas ferozes de “deselegância”. Seus consumidores vorazes não deram atenção a isso. Pelo contrário, adoraram a surpresa a “pegadinha” final. 

O romance é, também, o livro mais singular entre os escritos por Christie ao longo de sua produtiva carreira que a transformou na maior e melhor escritora policial. Protagonizada pelo detetive belga Hercule Poirot, seu mais famoso personagem, a trama se passa no pacato vilarejo britânico de Kings About, onde não há muito o que fazer e o tempo dos moradores é preenchido principalmente com fofocas sobre a vida dos vizinhos e personagens mais conhecidos do lugar. Um dos temas predominantes é o nome de Roger Ackroyd, considerado uma espécie de “fidalgo rural” – trata-se de um cidadão rico e proeminente, paciente e amigo do respeitado Dr. Sheepard. Uma das maiores fofoqueiras é a solteirona de meia-idade Caroline Sheepard, irmã do prestigiado médico. 

No momento, as linguarudas parecem interessadas em especial no relacionamento da viúva Miss Ferrars e de Mr. Ackroyd, mesmo depois de ela ter se suicidado. Ackroyd, muito abalado com o ocorrido, pede a Sheepard para jantar com ele. No encontro, conta-lhe que havia recebido uma carta de sua falecida amante, pouco antes do suicídio, em que revelava ter cometido tal ato de desespero por estar sofrendo chantagem por ter matado o próprio marido. Ackroyd, então, recebe outra correspondência em que consta o nome do chantagista. Mas é assassinado antes de abri-la, para não levar o criminoso à justiça. Quem fez isso, porém, não podia imaginar outra pessoa na vila poderia colocar tudo a perder: o detetive  Poirot, que acaba de se mudar, decidido a se aposentar de seu árduo trabalho de investigador. Com a ajuda do Doutor Sheepard, ele passa a investigar o crime. 

Como sempre, a investigação não será nada fácil e o detetive conclui que vários personagens têm motivos para praticar o crime. No entanto, tudo que se pode dizer é que, no final, nem mesmo Poirot encontra no menos provável suspeito o verdadeiro autor do crime. De imediato, óbvio, o mistério recai sobre a mansão onde Ackroyd morava e foi morto. Estabelece-se, ali, um ambiente de suspeitas e buscas contínuas de pistas e informações para tentar montar o quebra-cabeça. Não será fácil para o leitor porque o assassino não deixa pistas no decorrer da narrativa. Parece até que alguém cometeu um crime perfeito. Definitivamente, Aghata Christie convence de que é impossível saber qual dos suspeitos é o assassino, ou a assassina, de modo a fazer com que se fique absurdamente surpreso com o desfecho. 

Os méritos do livro apontados pela crítica são muitos e vão do jogo sutil entre verdades e mentiras e detalhes secundários que se explicam ao longo da trama e se encaixam no todo, ao fato de a história se desenrolar inicialmente de modo complexo, mas que acaba por levar a um desfecho genial em sua lógica e simplicidade. Agatha Christie estava mesmo inspirada. Como observa Sheila Schildt em sua resenha sobre o livro, uma das máximas mais utilizadas por Hercule Poirot neste e em todos os outros títulos da autora em que ele aparece como figura central da investigação, é o ponto mais importante desta intrigante trama: em uma investigação policial, nunca se deve acreditar no que é dito, mas, exclusivamente, nos fatos. No caso, literalmente, mais do que nunca, nada é o que parece ser. 

Agatha Christie publicou nada menos que 88 livros ao longo de cinco décadas. Seis deles circularam com o pseudônimo de Mary Westman –, entre romances, contos, peças teatrais, uma extensa e deliciosa autobiografia e textos não-ficcionais, que passaram a marca de dois bilhões de unidades vendidas ao longo do século XX e continuam a vender bastante nessa segunda década de 2000. Metade deles foi comercializada em inglês e a outra em 45 idiomas mundo afora. No Brasil, a escritora passou dos 15 milhões de exemplares no mesmo período – dois terços disso pela Nova Fronteira e Círculo do Livro. Hoje, sai também em formato de bolso pela L&PM. A romancista seguiu desde o começo um caminho próprio, mas bem próximo do policial moderno, graças à riqueza de seu domínio com a escrita, que usava na construção de seus personagens e tramas inteligentes. Sempre, no entanto, sem deixar de priorizar as narrativas labirínticas, digamos assim. 

Um aspecto deve ser admitido:  seus livros têm uma qualidade acima da média de outros autores, alguma originalidade e acerto na maioria das tramas. Trazem alguns elementos identificáveis  como uma situação peculiar de espaço limitado, com número elevado de personagens e suas complexas personalidades e, claro, um crime que transforma todos em suspeitos. Quase sempre, também, os álibis parecem perfeitos e desafiam o raciocínio do leitor. Seria possível sintetizar assim a obra de Agatha Christie? Ou teria algo mais como um rico exercício de observação e análise da natureza humana, quando levada a situações-limite como matar alguém? Certamente que sim. Seus romances trazem facetas da personalidade das pessoas: dissimulação, maldade, perversidade, traição, conspiração, mistério, intriga e segredo. 

Por outro lado, sua peculiar popularidade, que se perpetua a cada nova geração, merece alguma reflexão de mercado e conteúdo. Críticos acreditam que sua aceitação entre o público inglês tem a ver com a identificação do ambiente, as grandes propriedades rurais inglesas, onde ocorriam de verdade muitos dos crimes que ela descrevia e muitas vezes eram abafados pela política para não expor famílias poderosas. Ela escrevia com as cores da Inglaterra e, por isso, agradou também os americanos, que adoram o estilo de vida inglês, como observou Cláudio de Souza, especialista em literatura policial. No caso de outros países, predomina a qualidade de suas narrativas e a capacidade de criar histórias capazes de prender a leitura até o parágrafo final. Outro mérito é ela ter jogado sempre limpo com o leitor, nunca escondeu a condução da trama, mesmo no caso de “O Assassinato de Roger Ackroyd”. 

Muito antes de escrever o primeiro romance policial, Agatha Christie já tinha noção definida sobre que tipo de história queria e poderia fazer. Leitora voraz desde a infância, culta, sua ideia de uma aventura policial era bastante clara em sua mente: deveria ser policial, ter a presença de um assassino óbvio e que não era a pessoa que havia cometido o crime. Imaginou um romance que lhe parecia ter possibilidades. Naturalmente, haveria um detetive. Sabia que seu herói não poderia ser parecido com Sherlock Holmes, de Doyle. Inventaria algo diferente, mas que teria um amigo íntimo, um ator coadjuvante também. Poderia bolar um crime e um assassinato bastante incomuns. Artisticamente, porém, isso não a atraia de modo algum. Lembrou-se, então, que existia em seu país uma colônia de belgas refugiados, bastante numerosa. Sua compaixão pela desorientação desses imigrantes em um país estrangeiro fez com que pensasse em um investigador com essa origem. 

Certa manhã, enquanto arrumava seu quarto, decidiu que seu herói seria um inspetor, alguém que conhecesse bastante sobre como investigar crimes. Alguém meticuloso, ordenado, um homenzinho sempre preocupado em deixar tudo no lugar. Nasceu daí Hercule Poirot. Sua carreira de escritora só começou a decolar depois de ela esperar por dois anos até que um editor lhe desse retorno sobre seu romance de estréia, “O Misterioso Caso Styles”. A edição saiu quando ela tinha 30 anos, em 1920. E não parou mais de publicar, em uma produção incansável de mais de meio século, com média de dois livros por ano. O primeiro sucesso veio em 1926 e que é apontado como sua obra-prima, o moderno e original “O Assassinato de Roger Ackroyd”, com surpresas “reais’, não inverossímeis, e sua incrível capacidade de manipular até seis personagens ao mesmo tempo. Um bom motivo para se deixar de lado qualquer preconceito contra a escritora e a literatura policial.


Comments

Uma resposta para “[90 de 100] Da capacidade de enganar o leitor, segundo Agatha Christie”

  1. Avatar de Sheila Schildt
    Sheila Schildt

    Que legal, eu fui citada! Vou ficar famosa assim … Adorei a revista!

    Abraços

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.