[95 de 100] O fino véu da anormalidade, segundo John Fowles

coluna95Meio século atrás, quando a Internet ainda era algo impensável, alimentar a obsessão por alguém era algo bem mais complexo. Se no século XXI basta acompanhar a pessoa pelo seu perfil nas redes sociais a partir do anonimato da tela do computador, naquela época, exigia-se destreza, capacidade de dissimular, esconder, espiar, bisbilhotar. Era preciso outro tipo de esforço também: seguir fisicamente. Assim fez o protagonista do romance “O Colecionador”, do escritor inglês John Fowles (1926-2005). Sua descrição inicial sobre a mulher desejada até parece a de um olhar romântico, quase poético: “Sempre que ela estava em casa, de férias do colégio interno, costumava vê-la quase todos os dias, visto que morava bem em frente do Anexo da Câmara Municipal, onde eu trabalhava. Via-a sair e entrar em casa, frequentemente, com sua irmã e, por vezes, com rapazes seus amigos, os quais, claro, não eram muito do meu agrado. Habituara-me, quando me libertava por um momento dos arquivos e das estatísticas, a colocar-me à janela, e, através dos vidros embaciados pela geada, observava a rua, vendo-a, então, passar”. 

Mas a relação de Frederick Clegg com a bela estudante de artes Miranda não tinha nada de saudável, da mera admiração masculina ou mesmo de amor platônico. Pelo contrário, havia algo de doentio, de psicótico no interesse dele por ela, que ignorava por completo a sua existência inicialmente. “À noite, já em casa, eu registrava a ocorrência no meu diário de observações, fazendo-o, de início, com um X e, mais tarde, ao descobrir qual era o seu nome, com um M”. À medida que a narrativa prossegue, não se percebe um comportamento fora dos padrões. Parece o desejo da conquista ou do mero comportamento de um rapaz tímido, de não se fazer notar, do voyeurismo, por causa do detalhismo que se deduz em suas observações. “Encontrei-a também, várias vezes, na rua. Uma delas foi na porta da Biblioteca Pública, em Crossfield Street, quando fiquei atrás dela em uma fila. Não olhou para mim, mas eu vi bem a sua cabeça e o seu cabelo muito longo. Era de um tom bem claro, parecendo quase de seda. Tinha-o penteado em uma trança muito comprida que lhe chegava à cintura, caindo-lhe por vezes pela frente e, outras, por detrás das costas. Lembro-me também que, vez por outra, a enrolava no alto da cabeça”. 

“O Colecionador” é um marco na história da literatura psicológica e de suspense pelo modo sutil como adentra e explora a mente de um psicopata. Antes dele, só Jim Thompson (“O Assassino em Mim”) e Patrícia Highsmith (da série Ripley) tinham ousado mostrar que a loucura é muito mais imperceptível do que ver alguém falando sozinho ou matando por pura maldade. Podia ser uma pessoa de aparência absolutamente normal. Por isso, Fowles fez um livro de terror sem cenas grotescas ou de monstros homicidas. É o pavor vindo da mente, da psicopatologia de um doente que vive socialmente como uma pessoa qualquer. No caso, um modesto a apagado funcionário municipal, cuja única alegria foi, por muito tempo, colecionar coloridas e delicadas borboletas. Até o dia em que, repentinamente, torna-se dono de uma fortuna graças a apostas de futebol. Desde que seu pai morrera e sua mãe fora embora, Clegg morou com a tia Meg e uma prima com problemas mentais. Com a bolada, ele larga o emprego e acontece uma série de mudanças na sua vida e na de sua tia – relato que ocupa a primeira parte do livro, planejada meticulosamente, de modo a conduzir o leitor em um mundo bucólico e de perfeita normalidade. 

Com muito dinheiro no bolso, aos poucos, o rapaz acha que pode ter o mundo a seus pés. Inclusive Miranda, como se fosse uma borboleta de sua coleção. E seu plano diabólico começa a surgir. O primeiro passo nesse sentido foi comprar uma casa de campo, isolada de todas as pessoas, a partir de um anúncio que viu no jornal. Sua personalidade disforme, porém, faz com que ele o faça do modo errado. Clegg decide sequestrar e aprisionar Miranda, até que ela o aceite como seu dono. As histórias que antes só estavam em sua imaginação, agora poderiam se tornar reais, verdadeiras. O que ele não considera é a possibilidade de que as coisas fujam do seu controle. Afinal, não porque Miranda é dona de uma beleza incomparável, mas por ser uma moça culta e inteligente. O leitor não se dá conta de seus propósitos até o momento da compra da casa e após ele verificar a existência de dois porões subterrâneos. A partir daí, a história começa a ficar realmente assustadora. Ao longo de um mês, ele trabalhou duro para fazer com que nenhum ruído saísse do imóvel. Enquanto isso, decorou o lugar com a ajuda de especialistas e, estranhamente, comprou todos os tipos de vestimentas femininas e mobiliou o porão ao qual seria o quarto de Miranda com vários livros sobre arte. Sua ideia era impressioná-la. 

O jeito como o algoz age, no entanto, faz com que tudo dê errado. Como fazer com que alguém se apaixone por outro à força? Sem dificuldade, ele a captura e se mostra amigável com a vítima, trata-a do melhor modo possível, com a intenção de conquistá-la. Nos primeiros dias, Miranda reage com repugnância e várias tentativas de fuga. Em resposta, Clegg procura se controlar, mas impõe sua autoridade pelo terror para fazê-la crer que pertence a ele. O confronto está formado: o da força e da autoridade contra a inteligência e a astúcia.  A determinação mórbida de manter sua “peça” junto a si se torna algo envolvente como leitura, enquanto o jogo de gato e rato prossegue de modo imprevisível. A prisioneira ofusca e confunde o sequestrador, por meio da constante superioridade de caráter, sensibilidade, cultura e magnanimidade. Com notável coerência de estilo, segundo disse a crítica na época, Fowles caracteriza de forma competente e verossímil os seus tipos – personagens inesquecíveis que acabariam adaptados para o cinema em 1965, por William Wyler. A linguagem de Clegg foi descrita como algo que reflete sua personalidade disforme, gritantemente medíocre, enquanto o estilo de Miranda é ágil, nervoso, cheio de vitalidade. Não significa, porém, que ela conseguirá vencer esse embate, pois seu adversário é moralmente despido de qualquer preceito ou valor à vida, por exemplo. 

O romance de Fowles é dividido em três partes. A primeira é a mais longa, em que os acontecimentos da história dos dois personagens são narrados por Clegg. Propositadamente, por causa disso, os sentimentos de Miranda em relação a seu carrasco parecem confusos. Dá a impressão, por exemplo, que ela poderia estar criando algum vínculo com ele, algum sentimento que não quer revelar. Ou o faz por mera defesa. Na segunda parte, as dúvidas que surgem inicialmente em relação aos sentimentos de ambos são esclarecidas, uma vez que agora quem narra é Miranda, por meio de um caderno, onde estão as observações sobre seus sentimentos pelo sequestrador. Por fim, vem o desfecho, que leva à conclusão de que Fowles construiu um romance admirável, com personagens tão antagônicos e impedidos de se unirem em um mundo repleto de mitos e deformações sociais, além da loucura. Clegg e Miranda, observaram os críticos, assemelham-se a protótipos de uma classe social que não consegue perceber ou mesmo viver sua própria verdade. De qualidade acima da média, “O Colecionador” é assustador pelo modo como acaba, quando o leitor percebe o quanto doentio é o protagonista, movido pelo amor que se tornara uma obsessão. 

Fowles nasceu no leste da Inglaterra e estudou na Bedford School e no New College de Oxford, onde recebeu o diploma de Bacharel em Artes em francês. Decidido a seguir carreira de professor, mudou-se para a França e, posteriormente, para a Grécia, onde trabalhou entre 1951 e 1963. Nesse ano, retornou a Londres, contratado como professor de inglês para estrangeiros. Apaixonado por literatura e influenciado por escritores como George Eliot, Charles Dickens, Jane Austen, Guy de Maupassant, Fitzgerald e Thomas Love Peacock, Fowles começou a escrever. E seu primeiro livro foi “O Colecionador”, um estrondoso sucesso de público e de crítica em vários países. Isso permitiu que abandonasse o magistério e vivesse somente de suas produções literárias. Seu quarto romance, de 1966, “A Mulher do Tenente Francês”, rendeu-lhe o cobiçado W. H. Smith, prêmio concedido anualmente ao melhor autor britânico. Na trama, a história de amor entre duas pessoas de mundos sociais diferentes, durante a época da Inglaterra vitoriana. Esquecido há décadas pelos editores brasileiros, “O Colecionador” merece reverência como um clássico moderno, um dos marcos da contracultura da década de 1960, temperado com muito psicodelismo visual e audácia temática.


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