[2 de 100] O inventor da literatura proletária

Quando uma amiga de esquerda do escritor americano Michael Gold (1894-1967) foi presa em Berlim no ano de 1935, por um oficial nazista, uma semana depois de Adolf Hitler subir ao poder, ela traduzia seu livro Judeus sem Dinheiro (1930). Ao vasculhar os rascunhos sobre sua escrivaninha, o riso pareceu inevitável ao militar alemão e seus colegas. “Como judeus sem dinheiro, então existem judeus pobres?”, perguntou ele, com desdém e ironia. Referia-se ao fato de que a propaganda do regime de Hitler difundia o ódio ao afirmar que todos os banqueiros internacionais eram judeus. Preconceitos à parte, o romance de Gold – pseudônimo de Itzok Isaac Granich – é um marco nas letras americanas do século XX, fundamental para a consolidação da chamada literatura proletária que consagrou escritores como John dos Passos (1896-1970), autor de Paralelo 42, entre outros.

Gold faz um relato de formação, de descoberta do mundo, em uma linguagem das mais comoventes, em que a vida pulsa cheia de esperança, o que faz com que seu livro se torne inesquecível a qualquer leitor ainda hoje. É um relato tocante, quase poético, carregado da vontade de superação sobre a pobreza judaica em um bairro pobre de Nova York durante a sua infância, na virada para o século XX. “Pode-se contar a mesma história a respeito de uma centena de outros guetos espalhados pelo mundo afora”, escreveu ele, numa edição de 1935 – a primeira a sair no Brasil, pela Pax, data de 1932. “Os judeus vivem há séculos num gueto universal. A literatura iídiche está saturada de melancolia e da pobreza do gueto”, acrescentou.

Tragédia, humor, crueldade, traição, horror são sentimentos que se intercalam e mostram o quanto a realidade é complexa e desafiante. “Os rostos sempre ficavam nas janelas, pois a rua jamais os decepcionava. A rua era um imenso rebuliço. Nunca dormia. Rugia como o mar. Espocava como fogos de artifício”, escreveu ele na abertura. Mais adiante, lembrou o clima de fraternidade e força que unia a todos na luta pela sobrevivência, sem perder o humor: “Meu pai, aquele narrador maravilhoso, contou-nos sobre um romeno imprestável, que casara com a filha do coveiro para herdar o ofício do sogro e poder enterrar todas as pessoas que o tinham desprezado”. No quinto aniversário, sua memória seria gravada a ferro e fogo, quando, ao lado da sua casa, dois homens atiravam um contra o outro, até um deles cair morto e o outro fugir. “Um gato rastejava ao luar. E farejou o súbito cadáver.”

Sempre um militante comunista dedicado, Michael Gold ganhava a vida principalmente como crítico literário dos mais respeitados, entre as décadas de 1930 e 1960, quando morreu. Judeus sem Dinheiro foi uma obra assumidamente autobiográfica, lançada muitos anos antes do quadrinhista Will Eisner (1917-2005), também judeu, retratar em suas graphic novels (livros com história em quadrinhos) os guetos judeus nova-iorquinos e a sobrevivência miserável de seus moradores, em clássicos como Um Contrato com Deus e No Coração da Tempestade. Inexplicavelmente, a última edição brasileira do livro saiu há 31 anos – pela Record, em 1982. Não é uma obra datada que justifique esse desinteresse editorial. Longe disso.

Para o The New York Times Book Review, Gold captou toda a vida à sua volta em sua envolvente teia de palavras. “Sua história é uma obra-prima em prosa”, acrescentou o crítico. Para o jornal Village Voice, o livro foi um marco, o primeiro romance judeu a penetrar na cultura americana. O escritor era um humanista e um idealista, seguidor do socialismo como elemento indissociável em qualquer regime político. Não apenas defendia a raça judaica. Tanto que deixava claro que a histórica divisão de classes estava tão presente em seu povo como qualquer outro. Seu livro tem muito da sua voz marcante pelos direitos humanos e contra os regimes fascistas e quaisquer atitudes de intransigência, totalitarismo e discriminação contra qualquer povo. Por isso, permanece uma obra explosiva e atemporal, à espera de um editor sensível para reeditá-la.

Última edição em português:

Record, 1982.


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