[07 de 100] O panfleto contra a guerra de Dalton Trumbo

O livro Uma Arma Para Johnny, do roteirista de cinema e escritor americano Dalton Trumbo (1905-1976), é, sem dúvida, um dos maiores desafios literários que um autor já se impôs, pela complexidade em torná-lo real, verossímil, factível. Ou seria assim ou a trama não daria certo, não funcionaria. A experiência com roteiros de filmes certamente foi fundamental nesse processo. A observação se torna relevante por causa da originalidade da história que ele se propôs a contar: a de um jovem de 25 anos – chamado de Joe Bonham ou apenas Johnny – que volta da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) sem os dois braços, as duas pernas, cego, surdo e sem conseguir falar – além de não sentir cheiro. A partir dessa situação, vivida numa cama de hospital, ele tenta estabelecer um contato com o mundo lá fora e, desse modo, pedir para que alguém o mate, para por fim a seu sofrimento. Apenas com o calor das mãos de alguém – que ele supõe ser de uma enfermeira – ele inicia essa relação. E assim, pela mente, reconta o passado e tenta compreender o presente.

No prefácio à edição americana de 1970, Trumbo escreveu que a Primeira Guerra Mundial começou como um festival de verão – cheio de saias esvoaçantes e dragonas douradas. “Milhões e mais milhões aplaudiam da calçada enquanto altezas imperiais emplumadas, majestades, marechais de campo e outros toleirões desse tipo desfilavam pelas capitais da Europa liderando suas brilhantes legiões”. Ou, ainda de acordo com ele, era a estação da generosidade, pois se vivia uma época de bravatas, poemas, canções e preces inocentes. Toda essa atmosfera vai jogar Johnny no meio de um furacão e colocá-lo numa torturante situação de imobilidade e impossibilidade de seguir sua vida adiante. Nada, absolutamente nada, pode ser feito a partir da sua vontade, do seu desejo, pois não consegue exteriorizá-lo. Para quem está lá fora (do seu corpo), ele é apenas um “soldado desconhecido”, de identidade ignorada e, portanto, não se pode buscar sua família.

Trumbo escreveu seis romances e ficou mais conhecido como roteirista de cinema – escreveu nada menos que 76 deles, alguns que tornaram clássicos nas telas, como Papillon (1973), Êxodus (1960) e Spartacus (1960), este dirigido por Stanley Kubrick (1928-1999). Levou o Oscar de Roteiro Original por Arenas Sangrentas (The Brave One, 1956). Como assinou com pseudônimo de Robert Rich – e ninguém se levantou da plateia para receber o prêmio –, porque o autor estava na lista negra de Hollywood, só recebeu a estatueta em 1974. Atuou como ator em quatro filmes, inclusive Papillon, e dirigiu somente um longa-metragem, John Vai à Guerra (1971). Ao contar a tragédia de Johnny, um típico jovem americano saudável, idealista, patriota, porém ingênuo e ignorante, Trumbo construiu uma trama aterrorizante, mas sem nenhum elemento convencional do desconhecido, do monstruoso.

O horror está na situação do protagonista, vítima de uma aparente humanização que não tem espaço num conflito bélico: todos à sua volta querem cuidar dele, protegê-lo de alguma forma por acharem que ele tem direito a continuar a viver. A verdade é que ele vive uma situação-limite em que valores da democracia e o sentido da guerra são questionados de modo sutil, porém subversivo – numa época em que o autor flertava com o socialismo, mas que em nada reduz o propósito de sua crítica. Nesses extremos tão complexos, Trumbo construiu um libelo pacifista como raramente se viu numa produção literária – e cujo par é Nada de Novo no Front (1929), do escritor alemão Erich Maria Remarque (1898-1970). E que tem coerência com sua real situação de roteirista e escritor, banido de Hollywood no começo da década de 1950, acusado pelo macarthismo de ligação a conspiradores para impor uma ditadura comunista nos Estados Unidos.

Publicado no começo da Segunda Guerra Mundial, Uma Arma Para Johnny ganhou o National Book Award de 1940. Não demorou a ser adotado como leitura obrigatória pelos movimentos pacifistas desde então. A narrativa em terceira pessoa a partir da memória do protagonista é ainda mais impactante para o leitor por causa da estrutura que Trumbo montou para contar seu drama: capítulos intercalam a sua vida depois da mutilação, em que tenta, sem nada ver ou ouvir, situar-se no mundo, até descobrir que continua vivo, porém sem comunicação exterior; e a promissora vida que teria sem a guerra, numa América próspera e cheia de liberdade. Tudo que ele mais ambicionava era casar, trabalhar, ter filhos, vê-los crescer, amar sua esposa, divertir-se, beber, envelhecer e morrer, como costuma ser o fluxo normal da vida. E seu destino parece caminhar para isso, até ser chamado para o combate. O patriota Johnny acredita que voltará vencedor e seguirá seu rumo. Volta sim, para descobrir que queria mesmo era morrer.

Descrito pelo lendário editor brasileiro Enio Silveira (1925-1996), da Editora Civilização Brasileira, como uma obra-prima da literatura norte-americana e universal, Uma Arma para Johnny foi depois rebatizado de Johnny Vai à Guerra, por causa do filme. Como explica Gustavo Bernardo na apresentação da mais recente edição brasileira, esse romance lúdico e pungente, carregado de emoção, deve ser lido porque dá argumentos mais fortes contra os senhores da guerra. “Porque nos tira o choro do peito, mas o deixa entalado na garganta, e porque é muitíssimo bem escrito.” O livro em nada perdeu da sua atualidade e vigor, porque a guerra é algo indissociável à alma humana. Se é que ela existe.

Última edição brasileira:

Johnny Vai à Guerra, Relume Dumará, 2003.


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