Ao imaginar, no ano de 1949, como seria o planeta Terra meio século depois, em 1999, o escritor americano Ray Bradbury (1920-1912) acreditava que a corrida espacial, que começava naquele momento, iria longe. Ou seja, não haveria fronteiras para o homem na conquista do espaço. Tanto que ele chegaria a Marte e descobriria lá uma civilização inteligente à sua semelhança, possibilidade que ele exploraria com um pessimismo demolidor. Quinze anos depois dessa época idealizada, porém, no ano de 2014, os terráqueos ainda não foram a Marte, mas se tem a certeza de que lá não existem humanoides ou qualquer outra forma animal de vida. Ao morrer, com 92 anos de idade, Bradbury viveu o suficiente para ver que o mundo real caminha em um ritmo bem mais lento que a mente de mestres da ficção científica como ele. O homem foi à Lua “somente”em 1969 e a maior epopeia espacial da humanidade não foi muito adiante. Não viu seus pares chegarem a Marte e teve a certeza de que tipos esverdeados moram no planeta vizinho.
Nada disso, porém, tira o valor de um clássico da ficção científica, “Crônicas Marcianas”, lançado por Bradbury em 1950. Um feito comum somente aos grandes livros do gênero, uma vez que a maioria tende a envelhecer e a se tornar obsoleta. Nas décadas de 1940 e 1950, tudo que ele idealizara em seu romance parecia possível, tamanho o entusiasmo que o tema despertou na imaginação de todos. Discos voadores apareciam em todos os cantos e a vinda – invasão, quase sempre – de visitantes de outras galáxias era uma questão de tempo, segundo filmes, programas de rádios e histórias em quadrinhos. Havia quase uma unanimidade de que os marcianos existiam. Seriam seres verdes, curiosos, inteligentes, maldosos ou bem mais evoluídos que nós, a oferecerem o eterno embate com o desconhecido, com o imponderável. O tema rendeu filmes como “O Dia em Que a Terra Parou” (1951), dirigido por Robert Wise.
Nesse contexto, Bradbury criou sua obra-prima, sobre a colonização do planeta Marte, empreendida para que a humanidade continuasse existindo, em busca de recursos naturais e de empregos, uma vez que a Terra estava sob a iminência de ser devastada pela Guerra Atômica. Se o começo de um livro é fundamental para fisgar o leitor, tem-se aqui um bom exemplo. O autor escreveu uma trama com abertura arrebatadora. O ponto de partida é o momento quem o foguete tripulado com humanos parte para Marte e ele contrapõe o frio intenso do inverno de Ohio com o calor escaldante que sai da aeronave. “O foguete estava no campo de lançamento, e emitia nuvens quentes de fumaça cor de rosa. O foguete ficou lá, naquela manhã de fim de inverno, criando verão com cada descarga de seus poderosos propulsores. O foguete trouxe tempo bom, e o verão se instalou por sobre os campos por um breve momento…” A façanha dessa grande batalha interplanetária é descrita por Bradbury como uma divertida mistura de um cotidiano curioso por ele idealizado para os habitantes do planeta vizinho, com seus pães de cristal, fogo elétrico para se beber, icebergs que funcionam como congeladores.
Essas curiosidades funcionam como pano de fundo para o que seria uma dramática avaliação da vida social e do conflito de culturas. Assim, trata-se de um livro que não envelhece. Por outro lado, inverte com originalidade o clichê de colocar a Terra como um planeta a ser invadido por seres de outros mundos. Os marcianos, nesse caso, são surpreendidos pela chegada dos vizinhos (hostis), cujo endereço é descrito por eles como o “Terceiro Planeta”. É um lugar habitado por seres inteligentes, porém baixos e verdes, que convivem com animais exóticos e acabam por se tornarem vítimas das ambições desmedidas – e destrutivas – do homem. Uma invasão prenunciada um mês depois da partida dos terráqueos, quando a Senhora K – numa homenagem óbvia ao escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) – sonha com um homem alto e bonito, de 1,85 metro, pele branca e olhos azuis. É tão nítida a visão que ele se identificou como originário do planeta vizinho, o que o marido dela considera um absurdo, pois o suposto excesso de oxigênio impossibilitaria a existência de vida ali. Não faz ideia do mal que os aguarda. Nesse contexto, os vilões terráqueos acabam por ter uma série de conflitos com marcianos.
O livro é dividido em três partes, pontuadas por duas catástrofes na primeira metade, quando ocorre a extinção recente dos marcianos – em que o escritor faz paralelos com a iminente extinção da raça humana. A primeira parte cobre o período de janeiro a abril de 1999, em que se acompanha o início da missão terráquea, a rotina dos marcianos e, mais adiante, as tentativas dos terrestres de explorarem Marte com intenções de dominação. Em seguida, é revelado que a quarta exploração humana constata a dizimação dos marcianos por uma praga causada por germes que se tornam letais, trazidos da Terra em uma das explorações anteriores. A segunda parte vai de dezembro de 2001 a novembro de 2005, período em que tudo parece fácil para os terrestres seguirem seu plano de colonização do agora quase desértico planeta – na operação, fazem contato com poucos marcianos sobreviventes. Antes que a migração comece, tem início na Terra a guerra nuclear, que força o retorno de todos e interrompe o contato por um tempo com Marte. No trecho que vai de dezembro de 2005 a outubro de 2026, vê-se que os poucos sobreviventes humanos mudam de planeta e se tornam os novos marcianos.
No decorrer das décadas de 1950 e 1960, Bradbury foi um dos autores que mais inspiraram filmes e histórias em quadrinhos – teve vários contos adaptados para os quadrinhos pela lendária editora E.C. Comics –, o escritor acabou por marcar uma época. Para a crítica, ele fez parte da fantasia de várias gerações graças a uma mistura de imaginação e humor que não se tornou obsoleta, mesmo mais de uma década após o futuro imaginado em “Crônicas Marcianas”. Ele foi também escreveu “Fahrenheit 451”, romance que vislumbra um futuro sombrio em que livros são queimados e que o consagrou mundialmente, após ser levado ao cinema pelo diretor francês François Truffaut (1932-1984), num filme inesquecível. Sua prosa, com viagens espaciais e habitantes de outros planetas, acabou incorporada à realidade, principalmente nas duas últimas décadas, quando a revolução digital não para de mudar o comportamento e o pensamento das pessoas.
O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) colocou Bradbury, com suas “Crônicas Marcianas”, como um continuador da tradição literária de séculos de se imaginar mundos fora da Terra – tendência que fez nascer o termo ficção científica. “O que fez esse homem de Illinois, pergunto-me, ao fechar as páginas de seu livro, para que episódios da conquista de outro planeta povoem-me de terror e solidão? Como podem tocar-me essas fantasias, e de modo tão íntimo? Toda literatura (atrevo-me a responder) é simbólica; há poucas experiências fundamentais, e é indiferente que um escritor, para transmiti-las, recorra ao ‘fantástico’ ou ao ‘real’, a Macbeth ou a Raskolnikov, a invasão da Bélgica em 1914 ou a uma invasão de Marte. o que importa o romance, ou o romanesco, da science-fiction?” No livro, que Borges identificou uma“aparência fantasmagórica”, Bradbury colocou “seus longos domingos vazios, seu tédio americano, sua solidão, com fez Sinclair Lewis em ‘A Rua Principal’”. Com um aval assim, é um livro mais que recomendado.
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