“Dai-me os seus fatigados, os seus pobres/As suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade/O miserável refugo das suas costas apinhadas./Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades/Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado.”
Isso é o que está escrito na base da Estátua da Liberdade. Trata-se do poema “Novo Colosso”, de Emma Lazarus. Piegas, a meu ver, mas que não deixa de ser inspirador e grandioso – como, aliás, implora o próprio título. São palavras que serviram de propaganda política aos Estados Unidos da América de modo mais eficiente do que qualquer jargão da Coca-Cola, GM ou Nike. Confesso: quando lí, pela primeira vez, o texto aos pés daquele mulherão, deu-me um não sei o que no gorgomilo e no coração. O fenômeno foi a emoção ou a acidez estomacal produzida por um par de hot-dogs que comi antes do embarque na balsa que leva ao Liberty State Park? Mal desconfiava, naqueles idos dos anos 1970, que 40 anos depois a madame esverdeada viraria bicho.
Está em fase de instalação na Miss Liberty um sistema de “segurança e reconhecimento étnico”. É aquilo que indica o próprio nome: um esquema que usa computadores e câmeras de vigilância para fazer uma triagem étnica das tais “massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade”. FaceVacs, chama-se o programa, desenvolvido por uma empresa alemã e implementado pela firma de segurança “Total Recall Group” (uma referência nada sutil ou criativa ao título de um péssimo filme de ficção científica estrelado por Arnold Schwarzenegger). O aplicativo ainda é capaz de reconhecer: gênero, altura, idade, feições e tabular tudo para uma comparação com enorme lista de suspeitos terroristas.
Os contratados para a instalação e condução dessa peneira de turistas fazem da paranóia um ponto de honra. Isso me parece inevitável, já que a paranóia é o principal combustível para seus negócios milionários. Os trogloditas do Total Recall ameaçaram processar o repórter Ryan Gallagher, do sítio Slate e primeiro a reportar o esquema. Ou seja: “Primeira Emenda da Constituição? Aquela que garante a liberdade de Expressão? Caducou!”. Assim como a Quarta Emenda – direito à privacidade, entre outros. Acho que as Emendas estavam escritas a lápis e alguém apagou o original. Igualzinho ao que aconteceu com a libertação dos escravos no Brasil: a Princesa Isabel assinou com lápis Nᵒ 2. Passaram a borracha no jamegão.
Felizmente o velho Benjamin Franklin – um dos pais da pátria americana – escrevia a tinta. Aliás, era também, dono de gráfica e imprimia livros e panfletos. Foi ele que disse, e grafou indelevelmente: “Aqueles que renunciam as liberdades essenciais, para comprar pequena e temporária segurança, não merecem nem a Liberdade, nem a Segurança” (Novembro de 1755). Uma sentença sábia que foi minimamente modificada por motivos estéticos, mas sem alterar sua mensagem, e estampada numa placa, colocada na escadaria do pedestal da…Estátua da Liberdade.
Seria irônico, não fosse aterrorizante. O pessoal da chamada “Homeland Security” e seus esbirros da Total Recall não apenas desrespeitam o espírito das leis e ideias dos fundadores da nação, mas, desconfio, sequer conhecem o assunto. O FaceVacs é na verdade um modo legal de enfiar a mão no erário público, fingindo preocupação com a população. Os atentados de 11 de setembro demonstraram que o terrorismo não vive apenas de homens-bomba. Imagine se o programa tivesse sido instalado no World Trade Center, Pentágono, Casa Branca e Congresso antes de 2001. Teria-se evitado a catástrofe dos atentados? Será que no FaceVacs tem a ficha de um Boing 767-223ER? E de outras aeronaves? E de um barco de borracha com motorzinho de popa carregando uma porrada de explosivos, como aquele que foi usado para torpedear o navio de guerra USS Cole, em outubro de 2000 no porto de Aden?
Quem sabe, a tigrada do Total Recall tem estupenda lista de caras e bocas de sujeitos brancos, caladões, que não socializam com os vizinhos e estão prestes a entrar numa escola, McDonald´s, shopping center, cinema, salão de manicure, e outros estabelecimentos para metralhar o maior número possível de incautos e depois cometer suicídio. É aí, diga-se, que mora o perigo, já que a cada mês aparece um maluco desses nas manchetes de jornais. Agora que estão imprimindo armas de plástico em máquinas 3-D, não dá nem para contar com os detetores de metal. O FaceVacs vai flagrar essas pessoas? E eu, que nem quando fui como turistas à estátua pedi para tirarem foto minha no lugar, não pisarei mais naquela ilha. Não quero que me confundam, como aliás, já o fizeram em Massachusetts.
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