A voz e as vozes dos escritores

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Allen Ginsberg, sinfonia de um homem só, e William Burroughs, dono de uma voz rouca e seca, como um reverendo junkie cansado da vida

Nem sempre a voz literária corresponde à voz física. Por outro lado, podem coincidir tanto, que não parece haver distinção entre uma e outra. Separei alguns exemplos.

Todo escritor busca uma “voz”. Acredita-se que é essa voz que vai distingui-lo entre os demais. É quase o sinônimo de estilo, mas tem algo a  mais embutido; a escolha temática, o grau de profundidade, o ritmo etc. 

Todo escritor tem também sua voz, sem aspas, a emissão sonora que parte das cordas vocais, geralmente de forma inteligível, mas nem sempre.

Por alguma razão, gosto de ouvir a voz física dos escritores, não quando pedem um uísque ou falam do tempo, e sim quando leem suas obras. É revelador saber o tom com que vocalizam suas próprias frases. Podem ser surpreendentes também; onde o leitor enxergava ironia, ouve-se pompa, ou vice-versa (é o que frequentemente acontece com e-mails e mensagens de celular: sem a intonação vocal, se não forem bem explicados, podem ser mal interpretados e até causar problemas nada agradáveis).

Tenho alguns discos de escritores cuja voz parece ter uma ligação orgânica com o texto, tal a naturalidade com que o registro escrito passa para o oral. Todos beatniks, o que, definitivamente não é coincidência, já que escreviam muitas vezes num fôlego só, como um solo de jazz. Isso é evidente no caso de Jack Kerouac, que soa como um Charlie Parker das letras. Allen Ginsberg, com mais recursos de linguagem e imagens mais originais, é uma sinfonia de um homem só – não à toa, gravou algumas vezes com Philip Glass.

William Burroughs, cujo centenário se comemora agora, é um caso à parte. Tudo nele parece ser intrinsecamente coerente: o paletó e chapéu, o rosto de pedra, a elegância funérea dos movimentos, a apatia profunda, a voz rouca e seca e a entonação monótona, como um reverendo junkie cansado da vida. Há inúmeras gravações com ele, inclusive ladeado por Kurt Cobain.

Ligeiramente parecido, é Paul Bowles. A voz tem quase o mesmo timbre, a diferença está no tom; Bowles é mais melancólico e desiludido, não é tão seco; é mais lírico também, sente-se o efeito que a amplidão acachapante do deserto tem sobre cada palavra sua. Antes de escrever, ele era um conceituado compositor de música contemporânea, o que torna suas leituras ainda mais interessantes.

Alguns escritores faziam o contrário: partiam da voz para o papel. O caso mais conhecido é o de Henry James, que ditava seus lautos romances para uma secretária. Daí talvez as frases longas, as digressões, as muitas sutilezas, o emaranhado de sentidos.

Saul Bellow já passou por isso. Mas foi por pressão da editora, que queria ver seu livro pronto o quanto antes. Diante do ritmo insatisfatório de seu manuscrito, mandaram para sua casa uma secretária: ele ditava, ela corria com as teclas. Com sua postura elegante, sutilmente irônica, Bellow conta que ela chegou e foi logo avisando: “Estou feliz de fazer esse trabalho, mas não cozinho, não lavo roupas e não faço compras.” Está no vídeo abaixo, um dos quinze que o site Flavorwire separou de autores lendo suas obras.

Alguns chocam, pois suas vozes estão longe de ser o que imaginamos. Truman Capote, por exemplo, fala como uma velha encharcada de gim. A poeta Anne Sexton é de longe a mais sexy e interessante. Fala meio deitada no sofá, super à vontade. É sedutora até mesmo tratando de suicídio e morte.

Sylvia Plath inverte um pouco a expectativa. Eu a via como uma mulher mais frágil, depressiva, e o que se ouve da gravação é uma voz decidida, alta e clara, com acentos vigorosos no fim das frases, cheia da vida que logo ela mesma tiraria de si. Outro que fala de suicídio com uma firmeza impressionante é David Foster Wallace; sua voz está mais para um Bruce Springsteen da literatura do que para alguém que depois também desistiria da existência.

Flannery O’Connor, por sua vez, é divertida, faz a platéia rir com seu sotaque sulista, fraseado ligeiro e  jeito despachado, espirituoso. O mesmo serve para Kurt Vonnegut, que se apresenta com disposição juvenil, ri junto com a plateia, se atrapalha com os papéis etc. James Baldwin é musical, jazzy mesmo, com pausas bem colocadas, respiração cuidadosa. Joan Didion está mais para um Burroughs de saias, com menos humor: seca, amarga, sem inflexões, fria, direta. E Faulkner, afeito a bares e bordéis, parece pouco à vontade no seu discurso ao receber o Nobel. Fala como um gentleman ciente da solenidade, ciciando um pouco, com sua voz ecoando no ambiente lotado de gente “fina” e permeado por uma espessa expectativa.

 O site Flavorwire também reuniu uma coleção de 15 escritores lendo os seus próprios trabalhos. 

 


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