Dane-se o Brexit!

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Por que um país convulsionado como o nosso deveria se importar com o resultado do referendo no Reino Unido? Foto: EBC

No século XIX, os ingleses nos vendiam patins de gelo. Agora, nos vendem o Apocalipse, na forma do referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia. Tanto uns quanto o outro são inúteis nos trópicos. Os patins ficavam pendurados na sala das boas famílias como símbolo periférico de status. O clamor fabricado em torno do referendo nos distrai daquilo que deveriam ser prioridades.

Por exemplo:

  • Nos últimos dias, a polícia de São Paulo tem executado crianças de 11 e 12 anos, assim como jovens trabalhadores de qualquer idade, em ritmo de guerra civil. Os números são devastadores. Em 2005, cinco em cada 100 mortes violentas na cidade de São Paulo eram causadas por policiais. Este ano, as estatísticas são de 30 para cada 100. Diante do massacre, o governador, a Assembleia Legislativa e o Ministério Público Estadual nada fazem. Os paulistanos e demais brasileiros vão sendo encurralados entre bandidos e policiais que matam, mas são chamados a lamentar o que acontece no Reino Unido, onde a polícia nem porta armas. Jura?
  • Em meio à maior crise política dos últimos 50 anos, o Brasil descobriu esta semana que o motivo alegado para o impeachment da presidenta Dilma não existiu. Uma perícia mostrou que as tais pedaladas não tiveram a participação da presidenta. Ainda assim, o “julgamento” no Senado prossegue, como se nada tivesse acontecido. Tenta-se garantir a continuidade do golpe e do governo de Michel Temer a qualquer custo. Ainda assim, somos convidados a nos preocupar com o Reino Unido, onde uma população instruída e bem informada acaba de escolher livremente que não quer mais ser europeia – como, aliás, nunca quis.
  • Na economia brasileira, os gastos públicos que beneficiam os pobres e distribuem renda vão sendo dramaticamente congelados, enquanto o governo anuncia planos para encolher a meta anual de inflação para 4%. Isso vai permitir que os juros possam manter-se consistentemente nas alturas, ajudando a transferir renda de forma ainda mais rápida para os rentistas e para o sistema financeiro.

Se for absolutamente necessário falar do referendo britânico, que o façamos da perspectiva que nos diz respeito: os idosos, os pobres e os excluídos votaram no Reino Unido contra uma forma de capitalismo que na percepção deles concentra privilégios no topo da pirâmide de educação e renda, enquanto distribui desalento e maus serviços públicos na base. Eles votaram contra um sistema político que parece mais interessado em servir aos financistas bem-nascidos de Londres do que em criar oportunidades para as famílias comuns que vivem nas ruínas industriais do norte da Inglaterra.

(É evidente que o voto contra a Europa tem um componente xenófobo, mas seria desonesto exagerá-lo. Os ingleses têm sido racistas liberais há muitas gerações, mas isso nunca os impediu de se opor aos regimes totalitários da Europa. Nem permitiu que o fascismo prosperasse nas ilhas. A cultura política britânica é de tolerância e paternalismo em relação aos estrangeiros desde ao menos o século XIX. Tudo indica que continuará a sê-lo, com ou sem a União Europeia).

É importante lembrar aos brasileiros indignados que o projeto econômico-social derrotado no referendo do Reino Unido é o mesmo que Temer encomendou ao seu ministro da Fazenda para o Brasil, numa versão infinitamente mais bruta e destituída de humanidade, adequada a um país em que metade da população vive permanentemente excluída. O liberalismo antissocial de Temer é a moeda com que ele espera comprar a aprovação do mercado e obter apoio para ficar no cargo até 2018.

Com graves problemas práticos e morais, havia no País até o afastamento de Dilma um governo cuja meta era produzir crescimento e distribuir renda. Agora, há um governo com problemas práticos e morais ainda mais graves, que – sem ter sido eleito, sem qualquer mandato popular – pretende reduzir o Brasil a um terreirão liberal de Terceiro Mundo, desidratando as regras econômicas, sociais e ambientais que limitam a barbárie. Um lugar perfeito para os ricos ficarem mais ricos e os pobres ainda mais pobres.

Se houvesse um referendo aqui, Temer e seu projeto antipopular seriam expelidos de forma muito mais categórica do que ocorreu no Reino Unido com os defensores do projeto de integração europeia. A votação aqui não seria 51 a 49. Afinal, só 11% dos brasileiros aprovam que Temer esteja no governo. Mas, por aqui, ninguém quer ouvir falar de referendos e eleições. Com Temer no palácio e o povo longe das urnas, vão todos muito bem no andar de cima. E o populacho, como deixou claro o referendo britânico, nem sempre vota como a elite recomenda. Melhor evitar riscos.

As mesmas pessoas que lamentam o comportamento do eleitorado inglês em relação à Europa assistem impassíveis ao governo interino do Brasil virar as costas ao Mercosul, a construção mais importante da diplomacia do continente. O que se propõe é sobrepor ao bloco histórico um realinhamento subalterno e apressado com os Estados Unidos, como se a prosperidade brasileira pudesse ser assegurada pela entrada irrestrita de empresas e bugigangas americanas, garantida por um acordo de livre comércio firmado nas coxas.

À maneira deles – sorrateira, sem referendo, sem debates – Temer e José Serra vão fazendo o Brexit do Mercosul. Por que não se ouvem gritos de indignação dos nossos cosmopolitas? Porque as cabeças colonizadas que falam inglês (mas não entendem espanhol) acham que aquilo que acontece em nosso continente não tem importância, comparado ao que vai por Londres e Nova York. Continuamos a comprar os patins de gelo, apenas que ideológicos.

Se a Venezuela implodir em guerra civil, porém, o Brasil e toda a América do Sul serão afetados. Se o governo Macri sucumbir à inflação e fizer água, teremos um baita problema econômico na fronteira Sul. O destino da Bolívia, de onde nos chegam milhares de trabalhadores imigrantes, nos diz respeito. Esses países, economias e povos estão geográfica e culturalmente próximos de nós. O que acontece com eles nos afeta diretamente. No entanto, não tiramos os olhos de Londres.

Por isso tudo, não me comovo nem um pouco com o que acontece no Reino Unido. Leio sobre o referendo da forma como eles devem ler sobre o impeachment no Brasil – uma coisa distante, vagamente escandalosa, cheia de particularidades incompreensíveis. Fundamentalmente desimportante.

Tendo vivido quatro anos na Inglaterra, concluí que os ingleses enxergam o mundo de uma forma muito peculiar, intensamente autocentrada, e que, a despeito da sua polidez, se preocupam fundamentalmente com aquilo que percebem como seus interesses nacionais. Isso fez muito bem a eles ao longo dos últimos séculos. Provavelmente faria bem também aos brasileiros.

 


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