Liberalismo e filhotismo

Eleito presidente da Câmara, Rodrigo Maia se reuniu ontem mesmo com o presidente do PSDB, Aécio Neves - Foto: EBC
Eleito presidente da Câmara, Rodrigo Maia se reuniu ontem mesmo com o presidente do PSDB, Aécio Neves – Foto: EBC

Na disputada eleição para a presidência da Câmara, encerrada na madrugada de quinta-feira, não se ouviu menção aos interesses dos milhões de brasileiros que trabalham e votam. É verdade que a deputada Luiza Erundina, do PSOL de São Paulo, pessoa honrada como poucas na política, apresentou-se como candidata popular em meio a assembleia de cínicos. Mas teve somente 22 votos, o que equivale a dizer que foi ignorada.

A campanha que elegeu Rodrigo Maia girou em torno dos interesses dos deputados e de seus partidos, com olímpico descaso pelos problemas das pessoas comuns. Foi outra demonstração – mais uma – de que o sistema de representação política brasileiro opera de costas para o País.

Os candidatos ao segundo posto mais importante da República, que torna seu ocupante apto a substituir o presidente, deveriam dizer o que pensam sobre impeachment, financiamento de campanha, terceirização, desemprego e privatizações. Precisariam falar sobre a guerra às drogas, violência criminal e policial, o assassinato de jovens negros nas grandes cidades e a destruição física das nações indígenas no campo.

Mas não. Ninguém lhes cobra explicações. Tudo o que sabemos é que Rodrigo Maia até recentemente era da turma de Eduardo Cunha, que ele preside o DEM e que saiu candidato com apoio do PSDB. No segundo turno da votação, obteve votos do PT, embora tenha lutado pelo impeachment da presidente Dilma e faça do antipetismo sua bandeira pessoal.

Em seu primeiro dia na função, Maia disse que medidas impopulares – leia-se corte de serviços para os pobres, e não impostos sobre os ricos – tornam-se populares com o passar do tempo. Sinalizou com isso que a porteira da Câmara estará aberta aos projetos com que Temer pretende comprar apoio do mercado para ficar no cargo.

Assim como o interino, que foi eleito pela Câmara na votação do impeachment, Maia não assumiu compromissos com o povo brasileiro. Está onde está em consequência de arranjos de bastidores pelos quais se articulam os interesses econômicos e oligárquicos que patrocinam a política. Se ele, como pessoa, é pior ou melhor do que Cunha, pouco importa. A Câmara seguirá legislando em causa própria.

Maia descende de dois ramos antigos e medíocres da tradição política brasileira: o liberalismo e o filhotismo.

Ser liberal significa, nas circunstâncias atuais do Brasil, bater palma ao congelamento de gastos públicos e às privatizações precipitadas de Temer. O congelamento vai aprofundar a desigualdade e pode destruir a economia, como fez na Grécia. Privatizações malandras, como as de aeroportos, retiram rendas permanentes do Estado em troca de injeções (duvidosas) de capital de emergência. Até o insuspeito Fundo Monetário Internacional critica esse tipo de procedimento, lembrando que costuma beneficiar empresários amigos em detrimento do erário. Não obstante, é o que Temer quer fazer, com apoio de Maia.

Num país pobre e violento como o Brasil, marcado por uma desigualdade tão velha quanto profunda, a utopia liberal de reduzir o Estado ao mínimo – nos serviços que presta aos pobres, mas nunca nas benesses que oferece às pessoas influentes – confunde-se com racismo e negligência social criminosa. Declarar-se liberal no mar da iniquidade brasileira equivale ideologicamente a apertar o botão “foda-se”. No entanto, é assim que Maia se declara.

O novo presidente da Câmara é filho de César Maia, economista que por quase 20 anos foi um dos mandachuvas da política carioca. Rodrigo entrou na vida pública por convite, para integrar o secretariado de Luiz Paulo Conde, aliado e sucessor de seu pai na prefeitura do Rio. Tinha 26 anos. O cargo arranjado o projetou precocemente e permitiu que fosse eleito deputado estadual. Fez na Câmara uma carreira paralela aos mandatos do pai, inclusive entrando e saindo de partidos com ele. Quando o pai começou a declinar, ele tropeçou: teve só 3% dos votos para governador do Rio em 2012 e foi reeleito para a Câmara em 2014 com escassos 53 mil votos. Não está claro como virou sucessor de Cunha.

Rodrigo Maia pode se revelar um homem de talento e compromisso público, mas não é sensato contar com isso. Os clãs políticos brasileiros – Sarney, Neves, Collor, Magalhães – têm produzido mais desfrutadores do que realizadores. Em algum momento do passado, um sujeito brilhante, dedicado ou inescrupuloso (às vezes tudo isso ao mesmo tempo) fundou uma linhagem política da qual seus herdeiros usufruem sem mérito. Eles apenas guardam lugar para os seus próprios descendentes, enquanto amealham privilégios, como a oligarquia faz há séculos. São os filhotes.

Apresentada como um épico, a eleição para presidente da Câmara não passou de um rearranjo. Sai Cunha, entra Maia, segue Temer. O essencial da vida brasileira passa ao largo dessa pantomima de liberais e filhotes. A política se afasta da sociedade como um barco à deriva, incapaz de resolver questões essenciais. O país com seus problemas vai numa direção; o Congresso com seus privilégios, em outra. Uma hora, vai se repetir o que aconteceu em 2013, a ruptura explosiva entre eles.


Comentários

Uma resposta para “Liberalismo e filhotismo”

  1. Mas foi exatamente a ruptura de 2013 que nos trouxe até aqui.

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