A morte de Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, surpreendeu por sua imensa força viral no ambiente das redes sociais. No entanto, como destacado por rara parte da imprensa, o pensamento de Bauman pode ser vítima de sua própria teoria marcada pelo conceito do “líquido” nas relações sociais da sociedade contemporânea. Para ele, o capitalismo dos nossos dias, mais do que “flexível”, é forjador de uma incapacidade brutal de cristalizar laços sociais no que quer que seja. No que diz respeito ao conhecimento, na “modernidade líquida” é difícil as pessoas adquirirem um entendimento profundo sobre um tema. Toda a busca de conhecimento passa a ser funcional e torna-se superficial. Foi assim com sua obra também. O conceito do “líquido” ganhou as rodas de conversas em universidades, bares, festas e poucos passaram dos títulos dos inúmeros livros do autor.
Neste momento social e político do Brasil e do mundo, porém, ler Bauman com mais atenção pode nos ajudar a compreender melhor os acontecimentos e, por suas fendas, ir em direção a soluções para os desafios do século XXI. Não que ele tivesse a pretensão de oferecer respostas definitivas aos problemas sociais que abordou, mas Bauman era um excelente sistematizador da dinâmica social e conseguiu, assim, prover a sociologia de ferramentas de análise e categorias promissoras para compreendermos as causas. E é esse ponto que nos interessa mais aqui. Para Bauman, o início de qualquer possibilidade social depende do resgate de algum significado para a Seguridade Social. Em outras palavras, é o momento de pensarmos na Previdência Social, na Saúde e na Assistência Social fora das planilhas, sem números e colocarmos ênfase em seu sentido de instrumento para a coesão social.
A crise das prisões, as epidemias, a corrupção na política, a desvirtude das instituições entre outras anomalias contemporâneas, na visão de Bauman, têm sua semente na destruição dos sistemas de seguridade social. O Estado do Bem-Estar Social, no pós 2.ª Guerra Mundial, foi pensado, ele lembra em diversos livros, como um direito universal e condição imprescindível para a manutenção dos laços sociais. Depois de anos de liberalismo econômico e de políticas focadas em segmentos ou de caráter individual, a Europa se viu em frangalhos e, nesse ambiente pós-guerra, formou-se o consenso de que só uma seguridade social forte garantiria um “seguro coletivo” para a paz. O sistema, assim, reduz o estigma daqueles que dependem do Estado por pobreza, doença ou velhice. É por meio da Seguridade Social que o Estado aprumaria minimamente as oportunidades e reduziria a tendência à ampliação da desigualdade social. Tudo isso é o alicerce do pensamento de Bauman.
A partir do fim do século XX, precisamente no término dos anos 1970, passou-se a acreditar, destaca ele, que há alguma chance em encontrarmos “soluções individuais para problemas socialmente construídos”. Pura ilusão. Um dos símbolos dessa ilusão é a previdência privada em contas individuais. A biopolítica da financeirização da vida alimenta o sonho de que garantindo uma renda – em detrimento de milhões de outros, que vivem no mesmo território ou em outro, jamais a garantirão – asseguraria a paz e o provimento para a velhice. Bauman se esforçava assim para resgatar o sentido, o significado, o propósito de um sistema de seguridade social e convidava a pensar além das lentes fiscalistas. A destruição desses sistemas, vemos hoje, resultou também no desmoronamento das possibilidades de vivermos juntos. O Chile é o melhor exemplo, pois privatizou seu sistema, e hoje é o segundo país mais desigual da OCDE. A Grã-Bretanha caminhou para a desagregação com o mundo e internamente. A França e a Espanha estão sob a mesma ameaça.
Quanto aos Estados Unidos, o melhor alerta a confirmar as preocupações de Bauman é o estudo do prêmio Nobel de Economia Angus Deaton e da professora Anne Case sobre o aumento dos suicídios no país no segmento de homens brancos, não-hispânicos entre 45 e 54 anos entre 1999 e 2013. A pesquisa foi amplamente divulgada no mundo (e até no Brasil), com traduções de entrevistas de Deaton. Todavia os jornalistas omitiram de seus textos a principal conclusão do estudo (por incompetência ou não). Deaton e Case atribuem o aumento do suicídio na faixa estudada ao desmonte da seguridade social nos Estados Unidos. Eles dizem que o fato de o país ter “se direcionado para o sistema de contribuição definida em associação com o risco do mercado de ações, enquanto, na Europa, o sistema de benefício definido ainda é a norma” alimentou a insegurança financeira dos trabalhadores de meia idade em relação ao futuro.
“Se eles percebem um risco maior no mercado de ações ou se eles contribuíram inadequadamente para o plano de contribuição definida”, aumenta o sentimento de insegurança e fracasso, destacam os economistas. Essa situação de permanente insegurança e de uma suspeita de que será impossível replicar o mesmo padrão de vida da geração de seus pais, que desfrutaram do sistema de seguridade social por repartição, deságua no desespero. É o preço pela quebra do pacto intergeracional. Os Estados Unidos ocupam o 12º lugar entre os países da OCDE com maior número de suicídios. Está acima da média dos 45 integrantes do grupo. Não é considerada uma situação confortável para o país mais rico do planeta. Outras sociedades que sempre servem de exemplo no debate público brasileiro quando o assunto é envelhecimento, educação, trabalho ou aposentadoria, como Coréia do Sul e Japão ocupam, respectivamente, o primeiro e o terceiro lugar em número de suicídios no grupo da OCDE.
É preciso lembrar ao leitor que longe de abordar o suicídio aqui para espetacularizar a questão ou provocar alarme, estou preso a critérios sociológicos. O suicídio está na origem das Ciências Sociais, com o estudo clássico de Émile Durkheim, e é considerado tecnicamente um importante indicador da coesão social, das condições de saúde de uma sociedade, por isso a aferição desse dado pelas organizações multilaterais. No ano passado, a Fiocruz alertou para o número de suicídios no Brasil e chegou a iluminar seu prédio de amarelo em uma campanha por apoio às pessoas em risco. Pouco – ou nenhum – destaque foi dado pela imprensa a essa iniciativa. Apesar de 32 registros de morte por suicídio por dia no país, o tema ainda é tabu. E poucas pesquisas exploram sua relação com a previdência ou com a perspectiva de futuro no Brasil com essa anomalia social. A Brasileiros abordou a questão em matéria de outubro de 2015, “Quando a vida está por um fio, falar é a melhor solução”.
A Constituição de 1988, não à toa, incluiu a Seguridade Social no capítulo da Ordem Social. Isto é, da paz. Ou do “seguro coletivo” da sociedade, nas palavras de Bauman. No debate atual sobre a reforma da previdência, a tendência é o confinamento da discussão no âmbito fiscal, sem pesar as consequências em relação à coesão social. É por isso que essa interpretação meramente fiscalista, no meu entendimento, dificilmente resolverá o problema de sustentabilidade da Previdência Social no futuro, como prometem seus defensores. A tendência será uma deterioração ainda maior pelo fato de as novas regras criarem uma legião de não aposentados, ampliarem a desigualdade de gênero e desmoralizarem o sistema público ampliando o êxodo para a ilusão da solução individual, isto é, da previdência privada (VGBLs e PGBLs). O mesmo filme da desmoralização do sistema público, que contagia os jovens, principalmente, já passou no Chile na década de 1980. Deu no que deu.
O sonho de que todos podem ser empreendedores sempre alimentou o capitalismo. No entanto, a despeito de o sistema oferecer, de fato, chances, não faz do pequeno empreendedor livre das amarras ao grande capital. Ele continua pendurado por um frágil fio na vontade das grandes corporações que determinarão sua produção, seu fluxo de caixa, seu tempo e, principalmente, seu destino. Dito de outro modo, as chances de aferir poupança para a velhice continuam coletivas – do ponto de vista da produção – mas o esforço é individualizado, isentando justamente aquele que afere a maior parte do excedente produzido ou do lucro. Aqui vale o lugar comum: o indivíduo é entregue à própria sorte. Num capitalismo instável por essência, o desemprego (ou a falta de “cliente”) o assombra durante toda a sua vida laboral. O mais grave é que o vinculo empregatício formal, agora, é rompido muito cedo. Em média, aos 45 anos, o trabalhador é considerado pelas empresas como caro ou velho. O mercado de trabalho é cada vez mais exigente em relação às habilidades mutantes demandadas pela economia informacional. Forma-se o paradoxo: como se aposentar mais tarde se a demissão chega mais cedo?
Todos esses temas fazem parte do conceito “líquido” de Bauman. Ele foi um grande crítico à propagação ou idealização dessa sociedade do “eu me garanto”. Sua morte viral, porém, é oposta ao entendimento e aceitação de suas ideias por grande parte dos internautas do planeta. Eles são Bauman no virtual e como eleitores são seu inverso. São adeptos e fomentadores do mal-estar da globalização. Uma das causas, principalmente em relação ao desprezo das novas gerações por aderir ao pacto intergeracional dos sistemas de previdência por repartição, é a ausência da sociologia durante tanto tempo do currículo escolar. Isso limitou a compreensão da sociedade pelas pessoas. Sem a sociologia – e a filosofia – é impossível ensinar porque as coisas são como são. O termo “laço social” inexiste para essa geração e, principalmente, para a imprensa – que deveria ser a famosa mediadora, mas atua como combustível da visão meramente fiscalista da seguridade social, interessada sobretudo no bolo publicitário do setor privado.
O resultado, também amplamente apontado e analisado por Bauman, é a militarização como resposta às questões sociais, a criminalização daqueles que reivindicam mudança ou ensaiam resistência e, quanto aos deixados para trás, a prisão. A redução da seguridade social caminha parelha no mundo à ampliação da população carcerária. O crime organizado ou as organizações terroristas substituem o seguro coletivo e o pertencimento espoliado. Dispensável aqui se alongar nas consequências em meio a atual crise prisional ou onda terrorista. Ou ainda na imigração vulcânica dos que vão em busca de uma seguridade social onde existir ela possa, uma vez que, no país deles, ela nunca encontrou solo fértil. Uma crise planetária. Uma calamidade que custará caro aos Estados. Tudo o que pouparam na seguridade serão obrigados a gastar em presídios, armas ou equipamentos de segurança. Desviarão da saúde e da educação, cujos orçamentos foram encolhidos para garantir a prosperidade. Alguns se salvaram dessa lógica. Conseguiram acumular mais de 50% da riqueza do que sobrou de Nação. Mas o problema é que eles, como sabemos, não chegam a 1%. Foi isso que Bauman viveu para nos dizer e precisa ser viralizado.
* Jorge Félix é professor convidado da Universidade de São Paulo (Escola de Artes, Ciências e Humanidades), mestre em Economia Política (PUC-SP) e jornalista.
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