A crise política construída caprichosamente pelas empresas que dominam o setor de comunicação no Brasil chegou a um ponto no qual o cidadão comum, aquele que acredita em tudo que vê, ouve ou lê na mídia tradicional, se sente mais perdido que cachorro em festa de São João.
A cada momento pode estourar um rojão, a todo tempo pode haver um buscapé voando a meia altura.
Você, que acompanhou atentamente, e com toda fé, tudo que tem saído no noticiário desde a eleição de 2014, deve estar estranhando que até este ponto não apareceu nenhuma indicação segura de que a presidente da República levada ao Planalto pelo voto da maioria tenha cometido qualquer ilegalidade que justifique a suspensão do seu mandato.
Pelo contrário: entre os juristas indicados pela oposição para recomendar seu impeachment na comissão que discute a questão no Senado Federal, houve quem defendesse o afastamento da chefe do Executivo pelo “conjunto da obra”.
Ora, até o calouro da pior escola de Direito do País sabe que “quod non est in actis non est in mundo”, ou seja, o que não está nos autos não está no mundo. Portanto, o tal jurista estava apenas confirmando que todo esse movimento não ocorre no campo da Justiça, mas no pântano da política mais rasteira.
E quem é esse jurista? É presidente de um Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado.
Vamos lá olhar o que é essa entidade supostamente global, supostamente independente, supostamente engajada no melhor Direito, e verificamos que é apoiada por nada menos do que o Lide – Grupo de Líderes Empresariais -, iniciativa do empresário João Dória Júnior, candidato a prefeito de São Paulo pelo PSDB, cujo negócio consiste em alisar o ego de gente endinheirada.
Digamos que uma coisa não tenha nada a ver com a outra.
Fiquemos no conceito proposto pelo jurista, segundo o qual, não havendo no processo encaminhado ao Senado nenhum ato ilegal que justifique o afastamento da presidente, seja ela punida “pelo conjunto da obra”.
A quem caberia, e quanto tempo demandaria um julgamento desse tipo?
O que ele chama de “conjunto da obra” é apenas a versão que a imprensa hegemônica vem dando aos atos e declarações da presidente desde que ela foi eleita.
Pois é justamente para evitar esse absurdo jurídico que os julgadores devem se limitar ao que está contido nos autos. O resto não está no mundo, ainda que esteja na mídia. Entendeu?
Agora, vejamos os fatos que se seguiram à aprovação da continuidade do pedido de impeachment pela Câmara dos Deputados. Limpando todo o lixo publicado pela mídia hegemônica, o que temos é apenas o seguinte: o presidente da Câmara, que conduziu essa votação, tem o mandato suspenso pelo Supremo Tribunal Federal.
Assim sendo, todos os atos oficiais que praticou no cargo de presidente do Legislativo a partir da denúncia que motiva seu afastamento devem ser colocados sob suspeição e, eventualmente, anulados. Inclusive e principalmente o processo do impeachment.
Olha só a confusão em que você se meteu ao apoiar esse golpe travestido de processo legal.
Já ouviu o Bolero, de Ravel? Parece uma boa trilha sonora para o processo desse golpe. É uma melodia uniforme e repetitiva, como o noticiário em que você tanto acredita.
Mas o final pode surpreender.
Para ver e ouvir: Bolero, do francês Maurice Ravel, na interpretação da Concertgebouw Orchestra, de Amsterdã, sob regência de Barry Wordsworth.
**Jornalista, mestre em Comunicação, com formação em gestão de qualidade e liderança e especialização em sustentabilidade. Autor dos livros “O Mal-Estar na Globalização”,”Satie”, “As Razões do Lobo”, “Escrever com Criatividade”, “O Diabo na Mídia” e “Histórias sem Salvaguardas”
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