O país do paralelo

Marcelo Odebrecht em depoimento à Operação Lava Jato. Foto: Reprodução
Marcelo Odebrecht em depoimento à Operação Lava Jato. Foto: Reprodução

Acredito ter a memória de um tempo em que nas primeiras páginas dos jornais era possível encontrar todos os dias a cotação do dólar oficial e aquela do dólar paralelo, ou seja, aquela do mercado negro.

Ainda que minha memória me traia, é certo que hoje qualquer meio de notícias nos trará a informação sobre a compra e venda de dólar no mercado paralelo. Alguns nos lembrarão que esse mercado já foi muito maior e que continua sendo ilegal, mas a cotação estará lá.

Sempre achei que esse era um forte símbolo do Brasil, um revelador potente. Não revela apenas que há no país a economia informal, as coisas não contabilizadas, o universo do caixa dois, e que tudo isso é de tamanho relevante. Revela também, e isso é mais significativo, a naturalização do extra-oficial e do ilegal. Afinal, o curso de um mercado ilícito está estampado todos os dias nos jornais! Seria interessante saber como se tem acesso a essa informação.

Atenção, meu argumento não é moralizante, não decorre de uma revolta com o caixa dois e seus congêneres. É forte o argumento de que, em determinados setores da economia brasileira, alguma medida de informalidade é indispensável à sobrevivência e de que o próprio sistema legal empurra para a ilegalidade alguns de seus sujeitos.

O Brasil de que é símbolo aquela informação diária sobre um mercado paralelo é aquele em que há uma desconexão entre o estritamente legal e o que a sociedade, ou o mercado, consideram ser o curso normal dos negócios, aquele seguido inclusive pelas pessoas éticas e honestas. É também aquele país da necessária hipocrisia, porque na superfície é preciso sustentar sempre o discurso da legalidade. É por isso que a informação está lá, mas ninguém se pergunta em voz alta como mesmo é possível que isso seja assim.

Em outras areas, algo parecido acontece…

Então o Marcelo Odebrecht diz em vídeo com todas as letras que não há, segundo a sua convicção, político eleito no Brasil sem recursos de caixa dois. Diz que três quartos do dinheiro das campanhas é de caixa dois.

Jornalistas especializados em política estão reunidos para analisar e comentar essa e outras falas. Um deles reage dizendo-se impressionado com o modo como uma empresa teria sozinha comprado a política brasileira, o que eu não pensava ser possível deduzir daquele trecho de depoimento nem de todo o contexto circundante. Outro parece não ter entendido, ouviu que três quartos dos políticos tinham caixa dois em suas campanhas. Outro ainda se incomoda com o tom tranquilo em que aquelas coisas são ditas. O último está positivamente espantado!

Alguém poderia perguntar o que afinal fez ao longo de décadas esse pessoal que cobria a política brasileira para espantar-se agora com o modo como ela funciona.

As histórias que estão sendo reveladas são aquelas que ouvíamos na padaria, no bar, no taxi, que conhecíamos sem podermos atestar a veracidade de cada uma ou do conjunto, mas que sabíamos serem altamente prováveis. Eram histórias sabedores das quais ainda assim escolhíamos nossos candidatos e votávamos, em parte porque pensávamos que era inescapavelmente assim que se fazia política no Brasil, ainda que soubéssemos que ninguém ali fazia o que fazia por necessidade ou para sobreviver.

Esta é a pequena hipocrisia de cada um de nós, meros eleitores, e é certamente algo com que teremos que lidar nestes tempos que convidam à reflexão.

A nossa pequena desculpa é que não somos jornalistas investigativos nem comentaristas políticos.

Hoje todos estão surpresos com o desvio de dinheiro de estatais e com a serventia de ocupar postos e ministérios dotados com os maiores orçamentos. Ora, ao longo dos anos sempre se noticiou o modo como os partidos se digladiavam pelas nomeações e pelos cargos e até mesmo se fazia a menção ao tamanho dos orçamentos. Ninguém desconfiou da conexão?

A hipocrisia que encobre o funcionamento do sistema e que atinge também o modo como o sistema nos era contado chega agora ao seu limite e impõe desafios a todos.

Os empresários e alguns outros atores foram empurrados para fora da hipocrisia e finalmente falam com desenvoltura sobre o modo como as coisas eram e, certamente, continuam sendo. Eles não estão mais presos ao discurso da legalidade.

Muitos dos políticos precisam continuar a sustentar que sempre atuaram de acordo com a lei e isso enquanto o devido processo legal – já que não se pode nem se deve aceitar outro – prove o contrário ou até que sejam salvos por algum mecanismo – a falta de provas, a prescrição, o acordão ou mesmo as urnas.

A surpresa que muitos demonstram, alguns para quem a surpresa não era admissível, não ajuda a remediar a corrupção do sistema. Só se poderá lidar a contento com a corrupção se lidarmos também com essa duplicidade de códigos e com essa hipocrisia.


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