Foto: EBC
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Desde quando o show do eu está em cartaz?
 [1] Fiz esta pergunta no debate com Paula Silbila e Maria Lúcia Homem na Flip deste ano. A resposta mais clássica para esta pergunta remonta à formação do individualismo moderno, no século XVI, e sua partição entre a representação pública e privada, ou seja, desde que passamos a achar natural pensar a vida como um teatro.

Freud teria acrescentado a isso o fato de que o eu não é senhor nem diretor de cena do seu próprio teatro do eu. E como atores estamos em conflito e identificados aos nossos próprios personagens. Portanto, o que a psicanálise chama de narcisismo não deve ser reduzido à representação mental que temos de nós mesmos. Seria melhor dizer que o eu tem estrutura de teatro, de show ou de espetáculo, no qual somos ao mesmo tempo protagonista, auditório e críticos. 

Uma característica da montagem contemporânea do narcisismo é sua tendência a esquecer que protagonista não é aquele que manda ou que aparece mais na peça, mas, desde a tragédia grega, “aquele que carrega o conflito dentro de si” (agon, conflito). O verdadeiro protagonismo está em nossa condição de sujeito dividido, com suas contradições e traumas, com suas indeterminações reais. Contudo, a maior parte das caracterizações contemporâneas do eu enfatizam sua dimensão pós-traumática, incapaz de narrativizar seu sofrimento, envergonhada e depressiva diante de suas insuficiências, entediada e apática diante do persistente e secreto sentimento de irrelevância. Um narcisismo ocupado e destituído de interioridade que já foi descrito como “cansaço de si”.

Espera-se deste protagonista redução ao mínimo da distância entre personagem, ator e autor, mas também separação completa entre tais funções, quando necessário. Por exemplo, trabalho consciente, ético e ecológico para produzir uma boa imagem da empresa, mas ao mesmo tempo gestão produtiva do sofrimento e jornadas impiedosas de trabalho. O cinismo torna-se assim nossa normalopatia social dominante, pois exige fazer as duas coisas ao mesmo tempo.               

 A vida digital universaliza o princípio da bilheteria criando uma espécie de ilusão dentro da ilusão, ou de teatro dentro do teatro, no interior do qual  vamos enfim saber o tamanho de cada eu (pelo número de curtidas). O resultado, para ganhadores e perdedores, é o mesmo: política de indiferença, mesmidade ou banalidade. Isso estimula a reposição narcísica e seus dois efeitos imaginários fundamentais: a fascinação e a agressividade. Ao demandar a reencenação da peça narcísica, com mais amor e autenticidade, reforçamos que se trata de uma “peça”, aumentando seu efeito trágico de crise da experiência de intimidade.

Para entender melhor o Show do Eu seria preciso voltar ao momento em que ele entrou em cartaz pela primeira vez.

No “Livro das Transformações” [Metamorfoses Livro II], escrito por volta do ano 14 d.C., o poeta latino Ovídio compilou o mito de Narciso. No livro X ele descreve o que mais tarde veio a se chamar efeito Pigmaleão: “as pessoas tornam-se aquilo que outras esperam que se tornem”, também chamada de “profecia autorrealizadora”, esta propriedade da fantasia narcísica de criar seus próprios pressupostos de existência. A narrativa possui alguns detalhes que merecem ser lembrados. 

Cefísio, pai de Narciso, estupra Liríope. A ninfa belíssima, grávida, pariu um filho, muito digno de ser amado. Sobre ele recai então uma maldição: só poderá ser feliz se não se conhecer. Apesar de belo e desejável, por seu excesso de soberba, ele não se deixa tocar por ninguém. Eco, que então tinha corpo, não só voz, apaixona-se por Narciso, mas é condenada a apenas repetir suas últimas palavras, uma vez que era excessivamente bisbilhoteira. Quanto mais ela o segue e é recusada, mais ela o deseja. Uma de suas pretendentes lança uma maldição: “Que ele ame e não possua o amado”.

Só então ele desloca-se para a beira do famoso lago de águas prateadas e depara-se com sua própria imagem: “ama o objeto incorpóreo, sombra em vez de corpo”. Narciso não consegue  afastar-se de sua imagem, do reflexo, mas também não consegue possuí-la, invertendo assim sua atitude inicial de não se deixar tocar. Narciso reconhece então sua própria desgraça:

“Esse sou eu! Sinto; não me ilude a imagem dúbia. Ardo de amor por mim, faço o fogo  que sofro. Que faço? Rogo ou sou rogado? (…) Se eu pudesse separar-me de meu corpo!”[2]  

Em meio a este lamento ele rasga sua túnica e soca o peito nu, morrendo diante do rio Estige e transformando-se em flor.

Como se vê, para entender o narcisismo de nossa época precisamos deixar de lado a cena fundamental da paixão pela imagem de si, no espelho das águas, e levar um pouco mais em conta como esta é uma narrativa trágica. Na sua origem está a violência do estupro. Sua atitude fundamental não é o egoísmo, mas a distância e o medo daquele que não se deixa tocar. Sua verdadeira tragédia é a da impossibilidade do amor, naquilo que ele tem de potência transformativa. A tragédia de ser amado como um personagem e criticado como um ator. A paixão pela crítica, pela observação de menosprezo e de comparação permanente é tão narcísica quanto a paixão pelo protagonismo e em tudo similar à paixão daquele que vive como um personagem, repetindo a última palavra dos outros. Sua relação com o corpo não é só de admiração, mas de raiva e de desespero por não poder dele se separar. Finalmente Narciso não é senhor de si, autossuficiente e independente, mas alguém que sofre. Como todos nós.

Como dizia Ana Cristina César: “a intimidade era teatro”  [3].   

Notas

[1] Mesa com Paula Sibila na Flip 2016.

[2] Raimundo Barbosa de Carvalho (2010) – Metamorfoses em Tradução. (Parágrafo 465). Doutorado em Letras Vernáculas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. 

[3] César, Ana Cristina (1982) – A teus Pés. São Paulo: Companhia das Letras.

 

 


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