Bowie, a finitude humana e a imortalidade dos gênios

David-Bowie e o escritor William Burroughs em polaroid de Terry O. Neill (Divulgação MIS-SP - Victoria and Albert-Museum)
David-Bowie e o escritor William Burroughs em foto de Terry O. Neill (Divulgação MIS-SP / Victoria and Albert-Museum)

A difusão do anúncio da morte de David Bowie nas primeiras horas desta segunda-feira (11) é desses golpes estarrecedores que a vida nos prega. Há três dias, milhões de fãs ao redor do mundo celebraram nas redes sociais a chegada da 69ª primavera do artista britânico. Na última sexta-feira (8), no Facebook e no Twitter um sem número de posts enalteceu facetas memoráveis e a eterna juventude do cantor, compositor e ator britânico que, em 1969, extrapolou dimensões artísticas do rock ao lançar seu segundo álbum, a obra-prima Space Oddity. 

Para celebrar o aniversário com os fãs, Bowie escolheu 8 de janeiro de 2016 como data do lançamento oficial de Blackstar, 25° título de uma carreira que o colocou no panteão dos maiores artistas da música popular do século 20. Um dia antes, divulgou o videoclipe de Lazarus, primeiro single do novo álbum. Ironicamente, depois da sexta-feira festiva e em meio à descoberta do repertório de Blackstar – novo testemunho do talento inabalável de seu autor – temos de encarar em seco a despedida de Bowie. A privacidade hermética do tratamento do câncer que há 18 meses o abatia prega em nós uma peça amarga e desoladora.

Defensor ferrenho de sua autonomia artística, no clipe de Lazarus* Bowie parece deixar vestígios de que estabeleceu um ritual para sua partida. No primeiro frame do vídeo, uma figura enigmática sai de um armário. Na sequência, o Camaleão está deitado em uma cama de hospital com os olhos vendados e um par de botões de alfaiataria no lugar da visão – objetos que podem ser interpretados como uma alusão à antiga tradição grega de colocar um par de moedas nos olhos dos mortos.  Abatido, Bowie dispara os versos da primeira estrofe da composição, cujo título faz menção ao personagem bíblico, amigo de Jesus, que teria sido ressuscitado pelo messias. “Olhe aqui: estou no paraíso / Tenho cicatrizes que não podem ser vistas / Tenho um drama que não pode ser roubado / Todo mundo me conhece agora”, canta em tom melancólico. Atado na cintura e de braços erguidos, ele insiste em levitar. O personagem enigmático ressurge embaixo da cama, onde também é visível um sapato virado – para os supersticiosos, um chamariz para a morte. Vestido de preto, Bowie escreve em um bloco de notas e, perturbado, parece lidar com uma crise criativa. Nos segundos finais do clipe, ele é tragado para o interior do armário de madeira e, voluntariamente, fecha as portas enquanto ressonam os últimos acordes de Lazarus 

Desde o final dos anos 1980, quando, adolescente, abri uma linha divisória para reverenciar cronologicamente a obra de Bowie – ouvir tudo que ele já havia lançado desde 1965, quando surgiu como David Jones, e ficar atento a tudo que dele viria – considero o epíteto “Camaleão” um tanto reducionista pelo fato de a espécie animal, exuberante e multicolorida, ter a característica da transmutação resultante do instinto milenar de defender-se de seus predadores. Bowie jamais utilizou seus dotes mutantes para escamotear fragilidades criativas. Pelo contrário, o sem número de personagens, gêneros musicais e provocações estéticas adotadas por ele em mais de meio século de carreira confirmam: por trás do homem, finito como nós, havia um gênio artístico à prova de críticas fulminantes, à prova da ação do tempo e, portanto, imortal. O legado de Bowie pertence a nós, que tivemos a felicidade de ser seus contemporâneos, e as futuras gerações, que terão o enorme prazer de conhecê-lo. Como Lázaro, David Robert Jones será sempre redivivo. 

MAIS:

* Além da menção bíblica, Lazarus nomina musical escrito por David Bowie e Enda Walsh, com base no romance O Homem Que Caiu Na Terra, lançado por Walter Tevis, em 1963, obra que também inspirou, em 1976, adaptação cinematográfica de Nicolas Roeg em que Bowie atua como protagonista, o humanoide Thomas Jerome Newton. O musical norte-americano, dirigido por Ivo van Hove, fica em cartaz até 20.1 no The New York Theatre Workshop (saiba mais)

Leia reportagem publicada em Brasileiros na ocasião da abertura de David Bowie, mostra realizada no MIS (Museu da Imagem e do Som) em São Paulo. 

Leia reportagem exclusiva, de Fabiana Caso, sobre o Hansa Tonstudio, o mítico estúdio alemão onde David Bowie registrou Heroes, primeiro álbum da chamada Trilogia de Berlim, e também produziu The Idiot, a estreia solo do amigo Iggy Pop.

Leia também resenha de Le Freak, autobiografia de Nile Rodgers, produtor de Let’s Dance, um dos clássicos da discografia de David Bowie

Veja o vídeo de Lazarus

 

 

 


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