Desde junho de 2013, gastei muita sola de sapato, esquivei-me de balas de borracha, de bombas, e inalei muito gás lacrimogêneo cobrindo os protestos em São Paulo. Quando não pude ir às ruas, procurei acompanhar tudo, em tempo real, por meio da cobertura via internet feita por coletivos independentes de imprensa, uma alternativa das mais efetivas para qualquer cidadão que não esteja disposto a tornar-se vítima da narrativa alienante dos telejornais da TV aberta e dos jornais diários da grande imprensa do País.
Em 13 de junho de 2013, atendendo a pressão deste grupo hegemônico da imprensa, manifestada em editoriais de segunda página que exigiam repressão policial, São Paulo foi palco de um verdadeiro massacre contra manifestantes e colegas de imprensa.
Naquele dia, a pauta dos protestos foi a mesma que ressurgiu na capital paulista neste início de 2016 com a validação, no último dia sábado (9), do aumento das tarifas de ônibus, trem e metrô de R$ 3,50 para R$ 3,80, medida aprovada em conjunto por Geraldo Alckmin (PSDB), governador do Estado, e Fernando Haddad (PT), prefeito de São Paulo.
Naquele 4° ato contra o aumento da tarifa, , em 2013, quando o bilhete passaria de R$ 3,00 para R$ 3,20, a repressão policial deixou inúmeros feridos, entre os quais profissionais da imprensa. Tiro que saiu pela culatra, o jornal Folha de S. Paulo, um dos veículos que no dia anterior exigiu uma resposta enérgica da PM, teve um de seus colaboradores, Giuliana Vallone, repórter da TV Folha, atingida no olho direito por um tiro de bala de borracha desferido por um dos soldados da Rota. Por pouco, Giuliana não ficou cega. Sorte menor teve o foto-jornalista Sérgio Silva que, atingido da mesma forma, perdeu a visão esquerda. Na ocasião, o então comandante-geral da Polícia Militar, Benedito Roberto Meira, tratou o grave incidente como “riscos da profissão” (saiba mais). Silva luta até hoje para ter ressarcimento do Estado para pagar, ao menos, o tratamento médico.
A repercussão negativa provocada pela truculência da ação policial, concentrada, sobretudo, nas ruas Augusta e Maria Antônia, em 13.6.2013, fez com que, no mesmo espaço editorial, na manhã do dia seguinte, os veículos da grande imprensa, sobretudo a própria Folha, mudassem radicalmente o tom e pedissem que o governador tucano e a PM estancassem a sanha repressiva contra os manifestantes.
Na segunda-feira seguinte, dia 17 de junho, houve o 5° ato contra o aumento da tarifa. Como em um passe de mágica, houve zero registro de repressão policial e vandalismo. Um dos gritos dos manifestantes simbolizou “Que coincidência / Não tem polícia, não tem violência”. Para o bem e para o mal, aquele foi um dia histórico na cronologia da chamada Jornadas de Junho. Foi naquela segunda-feira que os protestos iniciados pelo diminuto grupo do MPL tomaram conta do País em diversas capitais. Somente em São Paulo, mais de 1 milhão de pessoas foram às ruas defendendo pautas difusas. Foi então que o MPL saiu de cena, por entender que não estava disposto a marchar ao lado de cidadãos que repudiavam representações de partidos, um dos pilares da democracia, e até de quem defendesse a volta do regime militar. Naquela segunda-feira, marchei, ida e volta, 14km até voltar ao conforto do meu lar doce lar.
A narrativa dos protestos da última terça-feira (12), e os realizados ontem (15) em São Paulo, intitulado pelo MPL de 3° Grande Ato Contra o Aumento, assemelha-se com o que aconteceu em 13 e 17 de junho de 2013. Na terça-feira, como naquele 13 de junho, a avenida Paulista foi transformada em campo de guerra. Previsto para ter início às 17h na Praça do Ciclista, situada no final da Paulista, quase esquina com a Rua da Consolação, o protesto foi abortado. Sequer pôde ter início porque, havia mais de uma hora, um contingente volumétrico de policiais, viaturas da PM e da Rota, tropa de elite da polícia estadual, motocicletas da Rocam e até uma das seis unidades do chamado Caveirão – veículo blindado, que custou aos cofres públicos cerca de R$ 5 milhões, cada – estava à espera dos manifestantes.
Estruturados na formação conhecida como ketting ou Panela de Hamburgo (entenda), caracterizada por um cinturão policial hermeticamente fechado para evitar a dispersão dos manifestantes e, dentro dele, reprimi-los. Coletivos de mídia independente, como o Jornalistas Livres, relatam que durante alguns minutos bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral eram disparadas a cada 7 segundos.
Veja vídeo da foto-jornalista Helena Wolfenson
notícias de uma guerra
Publicado por Helena Wolfenson em Terça, 12 de janeiro de 2016
Em entrevista coletiva, realizada na quarta-feira (13), o secretário Estadual de Segurança, Alexandre de Moraes, afirmou ter “só elogios à atuação da polícia”. A justificativa da ação extremada, segundo Moraes, foi a guinada dos manifestantes com relação à rota pré-definida da marcha. Ocorre que (como é possível atestar neste vídeo de Gustavo Basso) antes mesmo de o comandante da operação encerrar tal diálogo com os manifestantes, para definir o itinerário do protesto, já era possível ouvir explosões de bombas. Também em coletiva, horas antes dos protestos de ontem, o governador Geraldo Alckmin afirmou: “Alguns não querem manifestação. Querem confronto para aparecer na mídia”.
Inusitada a compreensão do governador do Estado de São Paulo, comandante da Polícia Militar paulista. Na cabeça do tucano, provavelmente, os manifestantes são imbuídos de impulsos masoquistas ao sair às ruas. Afinal, como enquadrar alguém que sente prazer em ter a disposição de sair de casa para encher os pulmões de gás lacrimogêneo, ter os olhos impregnados de gás de pimenta e tornar-se alvo preferencial de bombas, cassetetes e balas de borracha?! O estudante Gustavo Mascarenhas Camargos Silva, 19, um desses “masoquistas”, estava presente no protesto de terça-feira e corre o risco de perder o polegar da mão direita, conforme relatou a repórter Maitê Berna, da agência Ponte de Jornalismo Investigativo, leia).
Gustavo foi um dos 28 “masoquistas” feridos naquela terça-feira gorda de afrontas ao direito à livre manifestação previsto na Constituição Federal de 1988. A despeito do “saldo positivo”. manifestado no balanço do secretário e endossado pelo governador tucano, desde a manhã de quarta-feira, a repercussão ao espetáculo de violência gratuita na Avenida Paulista foi alvo de severas críticas de entidades como a OAB, a Anistia Internacional e o coletivo Advogados Ativistas.
Não por acaso, como no protesto de 17 de junho de 2013, Alckmin e sua PM recuaram durante o terceiro ato, realizado ontem em dois locais, a partir do Largo da Batata, em Pinheiros, e da Catedral da Sé, no centro de São Paulo. Por cerca de quatro horas, manifestantes marcharam em paz, festivos, entoando gritos de guerra, irreverentes, chamados agora por eles de jogral. Ao som de uma fanfarra, com percussão e metais, entoavam frases como: “ Três e oitenta não é tarifa, não! / Tem máfia no metrô / Bandido no busão” e “Não à repressão / Eu quero ver a tarifa lá no chão”.
Como um cidadão comum, portando apenas meu guarda-chuva, sai ontem da redação de Brasileiros, sediada em Pinheiros, e caminhei algumas quadras até o Largo da Batata. Entre um quarteirão e outro vários grupos, de oito a dez policiais, caminhavam, atentos. Alguns deles abordavam, para revista, supostos manifestantes – jovens portando mochilas, claro.
No largo, para monitorar um grupo de cerca de 500 manifestantes, estavam a postos quase cinco dezenas de viaturas da Força Tática da PM (não veículos pequenos, mas SUVs), cerca de dez bases móveis (as vans que fazem patrulha comunitária itinerante), dezenas de motocicletas da Rocam e quatro carros da Rota. Ciente de que também precisava cobrir a movimentação na Praça da Sé, recorri ao velho expediente de “onipresença”, que aprendi desde junho de 2013: fui acompanhar as duas marchas ao vivo, por meio da transmissão do Jornalistas Livres, Mídia Ninja e CMI – Central de Mídia Independente.
Na volta ao local onde estava meu carro, pude testemunhar operação arbitrária da PM. Três grupos enfileirados de policiais revistavam indiscriminadamente bolsas e mochilas de usuários que saíam das catracas da estação Faria Lima do Metrô. Adolescentes, jovens e até senhores e senhoras de meia idade eram tratados da mesma forma, discricionária: como potenciais agentes de “vandalismo”. Em entrevista à repórter Manuela Azenha, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de São Paulo, Martim de Almeida Sampaio, condenou esta ação da Polícia Militar e esclareceu que o expediente adotado, com o crivo da Secretária De Segurança Pública, é ilegal (leia a entrevista completa).
Quase quatro horas após o início das marchas, os dois protestos de ontem terminaram de forma “quase pacífica”. Explico. Os manifestantes do Largo da Batata rumaram até a estação Butantã. Já os que partiram da Sé, passaram pela sede da Prefeitura, no Viaduto do Chá, e subiram a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, a caminho da Avenida Paulista. Uma vez lá, fizeram uma pausa no Masp e encerraram a manifestação nas proximidades da estação Consolação do Metrô.
O “quase pacífica” mencionado no parágrafo acima, foi consequência do total despreparo da PM em articular, de forma ordenada, a dispersão de milhares de manifestantes que escolheram a estação Consolação para voltar a seus lares. Houve tumulto no saguão de acesso às catracas e alguns manifestantes, adolescentes, de ânimo exaltado, decidiram pular as catracas. Claro, foram reprimidos pela segurança do Metrô e os homens da Força Tática e da Tropa de Choque imediatamente desceram à estação para engordar a repressão.
Em meio a um efetivo tão volumétrico e tão preparado para reprimir, por que a PM não se organizou, antes da chegada da multidão, para ordenar a dispersão dos manifestantes na entrada do metrô Consolação? Pergunta que não quer calar.
Enquanto isso, na estação Butantã, estudantes secundaristas, pacientemente sentaram diante das catracas e aguardaram a chegada do chefe de segurança do Metrô para negociarem uma dispersão pacífica. Minutos depois, partiram para suas casas, pasmem, com direito a catraca livre (veja vídeo do Jornalistas Livres, que registra o momento). Dois pesos, duas medidas (aliás, leia análise comparativa entre as estratégias adotadas nos protestos pró-impeachment e durante os atos contra o aumento de tarifas).
Aqueles que ainda duvidam que grande parte das reações violentas dos manifestantes, o famigerado “vandalismo”, podem, sim, ser uma resposta natural à repressão descabida da PM, sugiro acompanhar pela internet, na próxima terça-feira (19), o 4° Grande Ato, previsto para ter início, às 17h, no cruzamento das avenidas Rebouças e Faria Lima. É bem provável que comecem a questionar a narrativa onipresente nos grandes veículos de comunicação do País que, desde junho de 2013, procuram criminalizar manifestações com pautas progressistas, como o direito a um transporte de qualidade e acessível a todos cidadãos.
Os leitores mais velhos devem lembrar do famoso bordão de uma marca de biscoitos “Vende mais por que é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais”. Nem tudo é absolutismo, amigos. Então, antes de sair por aí replicando vereditos dos monopólios de comunicação, vale refletir: repressão gera violência ou violência gera repressão?
MAIS:
Veja galeria de fotos feitas pelo repórter da Brasileiros, André Sampaio, durante a marcha que teve início no Largo da Batata
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