Anagrama é um jogo: busca-se, com as mesmas letras não repetidas, palavras com significados diferentes. Um bom começo para tentarmos entender o que porcos têm a ver com corpos. O anagrama  é uma racionalidade ligada ao ser das palavras. As palavras têm corpos. Os corpos se atraem ou se repelem, como as pessoas, as idéias, os países. Na poesia, mais do que rimas, temos campos magnéticos entre palavras. Poesia sempre ajuda. Ajuda mas não resolve.

Toda crônica que se preza busca sentido nos acontecimentos da vida. No banal, no ordinário,  vez ou outra, desvela-se o bizarro e o extraordinário. Bem nas barbas do cotidiano. Aqui, temos dois eventos marcantes na semana. Os dois envolvendo acidentes com caminhões em estradas. Porcos e corpos.

Começamos pelos porcos.

Um caminhão de frigorífico, transportando para o abate 120 porcos, tombou no Rodoanel em São Paulo. 30 morreram e outros noventa foram resgatados com vida. A ONG de proteção aos animais reivindicou 30 dos sobreviventes, para serem cuidados e assim transformar radicalmente os seus destinos de morte. 60 só adiaram um pouquinho. Rendeu um dia de congestionamento recorde e boas imagens para televisões e jornais.

Passamos aos corpos.

Dentro de um caminhão-frigorífico, estacionado às margens de uma estrada na Áustria, foram encontrados os corpos de 71 pessoas, das quais 3 crianças e um bebê. Nenhum sobrevivente. Fugiam dos bombardeios da Síria com a esperança de chegarem à  Alemanha e começarem uma nova vida.

O maior movimento migratório desde o final da Segunda Guerra está revelando como cada país da Europa pensa e se posiciona diante das dores do mundo.

Numa espécie de efeito bumerangue, multidões de seres humanos arrancados de suas terras, de suas “mátrias”, na Ásia e na África, rumam ao velho continente. A Alemanha deve receber neste ano, talvez por cicatrizes do passado, 800 mil refugiados. A Hungria constrói às pressas um muro (ainda os muros?) para impedir os deslocamentos em seu território. A Inglaterra e a França rosnam. A Islândia os acolhe nas casas de suas famílias, por empatia e responsabilidade  humanitária.

A  ideia de um espaço comum entre as nações e o valor que se dá à palavra dignidade são bons parâmetros para que localizemos, mais ou menos, em que ponto cada um de nós nos posicionamos dentro desse espectro moral, que vai da absoluta intolerância (temos que defender o que é nosso e cada um com o seu problema) à hospitalidade incondicional (como as famílias acolhedoras islandesas).  

E o que sentimos quando vemos a foto que “envelopa” o caminhão-frigorífico? Um tenro presunto espetado num garfo. Porcos e corpos.

Talvez estejamos naquelas situações em que pensar é mais difícil do que sentir. É como se por algum tempo renunciássemos a qualquer forma de linguagem, e a única racionalidade possível fosse o refúgio nas trincheiras do inominável.

E assim caminha, trôpega, a humanidade.


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