Torço pelo Brasil e torço pela seleção brasileira. Torço pela seleção canarinho e isto não me faz menos ou mais crítico com relação aos problemas que temos a resolver no País.
Em 1970 torcemos pelo Brasil que ganhou o tri no México e havia um general torturador sentado na cadeira da presidência em Brasília. Hoje em plena democracia e em democracia plena por que torcer contra? É muita burrice, para dizer o mínimo, torcer contra para abalar o prestígio da Presidenta (é presidenta, sim: Houaiss, página 1546). E vale dizer que a única relação entre Dilma e Médici é que ela foi torturada por ele.
Portanto, dá-lhe, Brasil! Dá-lhe Felipão! Dá-lhe Thiago Silva e seus comandados! Pra frente Brasil, como se dizia em 1970. E hoje não são 90 milhões, hoje somos 200 milhões de habitantes. Salve a Seleção! Como dizia a música de 1970.
Wagner Wiliam, colaborador da Brasileiros, autor de O primeiro voo do Condor, capa da edição 65 de dezembro de 2012, prêmio Herzog de 2013, é também autor da biografia do Marechal Lott.
Personagem da história do Brasil principalmente depois do suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954, Lott foi um dos militares que assinaram o documento que pedia o afastamento do presidente durante a crise que culminou com sua morte.
O vice de Getúlio, Café Filho, assumiu e nomeou Lott ministro da Guerra. Como tal ele garantiu a posse de Juscelino Kubitschek e seu vice João Goulart, vencedores das eleições de 1955.
Mais tarde se opôs ao golpe militar de 64 e foi, por isso, preso.
Durante a ditadura militar, seu neto, Nelson Lott, foi preso e torturado. A história do marechal e também de seu neto estão no elogiado livro de Wagner William, O soldado Absoluto: Uma biografia do Marechal Henrique Lott .
A seguir, sob o título Pra frente Brasil, um emocionante relato de Nelson Lott sobre porque devemos torcer pelo Brasil:
Abril de 1970, um “catarina” da PE da Barão de Mesquita quando me conduzia ao banheiro em voz conspirativa sussurrou-me ao ouvido: “Brasil 3 a 2”. O que ele queria dizer com isso? Uma informação codificada para a pessoa errada? Alguma provocação? O meu universo ali era muita tortura por “ponto” e “aparelho”. Quando retornei ao corredor das celas onde estávamos atirados a um canto como trapos velhos, tratei de passar a informação adiante, pois aquela provável frase cifrada poderia representar alívio ou sinal de perigo para algum companheiro.
Depois de 52 dias de isolamento, maus tratos e torturas transferiram-me para DOPS do Rio de Janeiro. Os trinta a quarenta presos políticos movimentavam-se livremente entre as celas, em conluios e discussões. Quando entre as lideranças ali encarceradas e conhecedoras dos planos já se discutia lista de pessoas a serem trocadas no sequestro do embaixador alemão prestes a realizar-se, outro assunto tornou-se relevante: torcer pelo Brasil na Copa. Torcer pelo Brasil seria fazer o jogo da ditadura, torcer contra seria andar na contramão do povo brasileiro. A chegada de televisões compradas, doadas e instaladas pelos bicheiros que estavam ou estiveram ali presos conosco agravou a questão. Iríamos usufruir de benesses conseguidas com base na corrupção por lideranças do crime organizado?
Passei em branco por essas discussões bizantinas por total falta de interesse, pois futebol nunca me atraíra. Quando as grades do DOPS abriram-se para a entrada da minha primeira visita o assunto copa não foi ventilado, por meu total desconhecimento do que se passava na galáxia extra masmorra. Lambíamos as nossas respectivas feridas e eu tentava estimular os sonhos e esperanças da minha mulher grávida, tentando esconder-lhe o martírio nas salas de tortura da PE. Na segunda visita a minha mãe entusiasmadamente contou-me da decoração do seu apartamento, com bandeiras e faixas verde-amarelas nas janelas, no álbum de figurinhas que completava para o neto por nascer, da reunião de parentes e amigos para assistir aos amistosos e prévias da copa. Animava-me vê-la assim, talvez escondendo seu sofrimento com a exibição de uma alegria inocente.
No DOPS as televisões ganharam a torcida, com exclamações e gritos contidos pelo ambiente de cadeia, mas patentes nas expressões nos rostos de quase todos. Continuei indiferente, vinte e dois homens correndo atrás de uma bola parecia-me coisa de gente sem objetivos na vida.
A relativa liberdade nas celas do DOPS foi efêmera, pois após uns dez dias voltamos para as masmorras da PE da Barão de Mesquita. Os gritos e sons das pancadas continuavam a ecoar pelo corredor, enchendo-nos de temor e angústia. A qualquer momento a porta da cela seria aberta e mais uma vez seríamos arrastados até a sala roxa para novas e longas sessões de choques elétricos, afogamentos, espancamentos, gritos e ameaças. Foi o que me aconteceu, felizmente não na intensidade esperada, mas na temida.
Diferentemente do meu período anterior naquele centro de torturas, quando as sessões de interrogatório e violências se estendiam quase ininterruptamente dias e noites seguidas, com vítimas e carrascos se sucedendo, agora havia alguns períodos de trégua. Num desses períodos um soldadinho da PE, sorridente, coloca a boca na janelinha e revela em voz baixa: “Brasil fez 1 a 0”.
Associei uma coisa com outra, havia um jogo e o Brasil participava. A bola rolava em algum lugar no México e os torturadores a acompanhavam pela televisão e como efeito colateral, nós tínhamos um intervalo de alívio, sem gritos e pancadas. Não havia como avaliar o efeito das vitórias do Brasil na sanha dos torturadores, mas certamente em caso de derrota, nós sofreríamos por sermos maus brasileiros. Passei a torcer pelo Brasil, pois cada jogo da nossa seleção significava duas horas a menos de torturas e só quem passou por isso sabe a importância de minutos para recompor ideias e fôlego. Cada vitória brasileira nos gramados mexicanos abriam duas horas de paz, fora as prorrogações e não sofreríamos represálias.
Continuo sem entusiasmo por futebol, mas torço pelo Brasil, lembro-me das horas de alívio das torturas de 44 anos atrás, penso nas milhões de pessoas às quais uma vitória da seleção pode significar uma alegria por menor que seja e quanto a derrota pode ser mais uma frustração para um povo valoroso. “P’rá frente Brasil!”
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