Quem tem medo de Gloria Coates?

Se me perguntassem hoje um livro que mudou minha vida, eu diria, sem titubear, que foi O resto é ruído, do Alex Ross. Poderia dizer Montanha Mágica, Crime e Castigo ou Tanto Faz (do Reinaldo Moraes) e não estaria mentindo.

Mas o “Ruído” é mais recente e transformou minha forma de ouvir música. Depois me encontrei duas vezes com o autor, o que só aumentou minha boa impressão.

Não que eu tenha sido subitamente convertido à música erudita de vanguarda. Já gostava muito de Stravinski, Debussy, Schoenberg, Steve Reich, Arvo Pärt e outros do século 20. 

O efeito crucial do livro foi despertar um interesse pela música – literalmente – contemporânea. E qual não foi minha surpresa ao ver que existe todo um universo vivo, acontecendo aqui e agora, a ser explorado. 

Antes de mais nada, preciso explicar aos eventuais leitores deste blog que não sou um expert em música erudita. Sou basicamente um roqueiro que se entediou um pouco com a institucionalização do rock e passou a procurar experiências sônicas em outros lugares – até mesmo geograficamente falando: música africana, árabe, balcânica, eletrônica, salsa, free jazz, folk experimental, rap iraniano, samba torto….passei a ouvir de tudo com uma avidez enorme, e sempre com ótimos resultados. 

No campo da música contemporânea propriamente dita, descobri compositores relativamente jovens que me deixaram impressionados: Mark-Anthony Turnage, David Lang, Oláfur Arnalds, Missy Mazzoli e outros.  

Mas quem me chamou a atenção para um trabalho intenso e absolutamente original foi a veterana Gloria Coates, nascida no Wisconsin (EUA), em 1938, mas que viveu bastante tempo em Munique, na Alemanha, onde fez um importante trabalho de intercâmbio.

 

Basicamente, ela utiliza a técnica do glissando, onde se “escorrega” pelas notas, como se a música estivesse derretendo, ou entrando numa espiral, de forma a criar uma atmosfera que se poderia  chamar de suspense abstrato, mas que carrega consigo também uma dose profunda de emoção.

Lembra algumas experiências do Ligeti, com algo do Bernard Herrmann de Psicose. A diferença é que, sob a teia de múltiplas cordas subindo ou descendo em glissando na escala tonal, ela insere também trechos de melodia revelando uma luz no fim daquele túnel de aparente angústia, que às vezes faz até pensar num avião caindo, ou num pesadelo alucinógeno. 

Há uma beleza estranha, rara, em cada momento de suas peças, que intriga e comove na mesma medida, como se ela conseguisse, de alguma maneira, encontrar a trilha sonora de um inconsciente perturbado, sem, porém, fechar-lhe as possibilidades de escape.

Curiosamente, ela também é atriz e pintora. Seus quadros de expressionismo abstrato estão em várias capas de seus discos.

Talvez o melhor deles para se começar a conhecer sua obra, que também já foi classificada como “mística” e “pós-minimalista”, seja mesmo o mais recente, lançado pelo selo Tzadik, do multihomem do jazz, da música contemporânea e das vanguardas, John Zorn. Chama-se Gloria Coates: at midnight, e reúne vários intérpretes em gravações de obras suas de diversos períodos. 

Literatura musical 

E já que estamos nesse assunto, vale uma nota sobre o também norte-americano Robert Ashley, compositor de música experimental, que morreu no último dia 3, aos 83 anos, de cirrose hepática. Três meses antes, ele havia completado sua última ópera, Crash.

Ele ficou conhecido pelas óperas não-cantadas, ou cantadas parcialmente, em que falas diversas se sobrepõem num “cenário” musical eletrônico (às vezes um simples piano acústico com efeitos ao fundo), muitas vezes proporcionado pelo próprio compositor, que acompanha os cantores ao vivo (pense numa mistura entre Philip Glass, Laurie Anderson e algum elemento inefável, próprio de Ashley). 

Sua primeira obra-prima, Perfect Lives, de 1978, foi feita para a televisão, algo nunca tentado até então, e recebeu elogios rasgados da crítica especializada, que chegou a dizer que era um marco essencial da ópera americana.

 

Peter Greenaway fez um filme sobre ele. E há alguns livros tirados de suas óperas: Quicksand (A quadrant series) é um deles, e foi publicado como romance em 2011, o que ressalta o caráter predominantemente literário de seu trabalho.

 

 

 

 

 

 


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