Tempestade na esquerda francesa (ou O Grilo Falante ainda está vivo)

Myrian El Khomri, ministra do Trabalho da França. Foto: Reprodução/gouvernement
Myrian El Khomri, ministra do Trabalho da França. Foto: Reprodução/gouvernement

Hoje, pela janela, vejo o vento agitando antenas nos telhados, no céu nuvens negras, flocos de neve esvoaçando e, de repente, o sol. Metáfora do que agita o país.

Esperava-se que semana que vem o projeto de lei visando a mudança do código do trabalho fosse apresentado ao Parlamento pela ministra Myriam El Khomri, que dirige o Ministério do Trabalho desde setembro de 2015. Mas o projeto conhecido como “Lei El Khomri” está sendo considerado por uma ala do Partido Socialista como uma traição ao princípio fundador da esquerda: a defesa dos trabalhadores. Com as 800 mil assinaturas da petição lançada online manifestando o descontentamento da população e o levante dentro do Partido Socialista através de uma ácida tribuna publicada no jornal Le Monde por Martine Aubry (uma das grandes figuras do PS),  a contestação está em marcha. Tanto que o Primeiro Ministro Manuel Valls resolveu ganhar tempo e adiar do dia 9 para o dia 24 de março a apresentação deste projeto de lei diante da assembleia.

Alguns dizem que a ministra El Khomri, 37 anos, foi colocada neste cargo como um fantoche, para facilitar a imposição da visão neoliberal do atual governo que se concretiza através desta reforma do código do trabalho. De fato, ela é jovem, pouco experiente e portanto, facilmente manipulável. Na terça-feira, ela teve que ser hospitalizada por algumas horas. Um acidente doméstico, alegou o Presidente Hollande. Uma pressão demasiado forte para esta ambiciosa mulher – cochicharam outros – alçada talvez rapidamente demais ao círculo ministerial.

Ainda mais jovem que a Ministra, o seu conselheiro em estratégia Pierre Jacquemain, designado para tratar da reforma do Código do Trabalho, opôs-se às orientações do Primeiro Ministro e finalmente, demitiu-se de suas funções, marcando seu desacordo. Num belo texto também publicado no jornal Le Monde, ele diz : “Para se fazer política, é preciso sonhar. A Reforma de Myriam El Khomri deveria ser portadora da exigência de um novo modelo de sociedade. Era para ser uma reforma progressista e será ao final, uma reforma de compromisso, ou pior, de comprometimento. Será lembrada como uma traição histórica de uma esquerda desnorteada.” E ele termina sua tribuna fazendo perguntas : “A tecnocracia vencerá a política? A renovação de geração das nossas classes políticas é apenas uma fachada? Quero crer que uma outra via é possível, desejável, necessária. A política é uma questão de convicção, de coluna vertebral, de visão, de transformação e de sonho. Para se fazer política, é preciso sonhar, eu ia dizendo…”

É o que lembra igualmente em substância, o texto de Martine Aubry publicado no jornal Le Monde no dia 24 de março. Depois de apontar todos os desvios de rumo de seu partido – o acordo de 2014 com o Medef (sindicato dos patrões), o não-investimento na chamada nova economia e no desenvolvimento sustentável, a não-diminuição do desemprego; depois de tachar a lei sobre a perda de nacionalidade para os terroristas binacionais de “desoladora e perigosa” e de “indecente”o discurso de Manuel Valls em Munich sobre os refugiados (que ele se nega a acolher em massa), Aubry afirma que a mudança do Código do Trabalho é a gota que faz transbordar o vaso : “trop c’est trop”.

Para terminar sua tribuna, ela lembra que ser de esquerda é manter o rumo do barco em direção ao que é justo para o maior número de pessoas possível. “Do ideal à realidade, há sempre uma distância que desde Jean Jaurès (socialista, pacifista, assassinado em 1914) nós aprendemos a aceitar. Mas olhar para o mundo como ele é, não equivale a renunciar à sua transformação para aproximá-lo do que ele… deveria ser. Menos ainda a afastá-lo da idéia de justiça. É no entanto o que está acontecendo na França.”  Um trovão !

Em mundo em que a política perdeu sua força enquanto prática do cidadão, em que a esquerda se pensa como direita, e a direita torna-se extrema ou corrompida, me faz bem sonhar com um renascimento da esquerda francesa fundada em sua mais importante função : a do espírito crítico . A esquerda verdadeira é aquele Grilo Falante soando no ouvido dos inebriados pelo poder, é a consciência que não se cala, é a salvaguarda dos abusos, a defesa dos mais frágeis.  A esquerda com que sonha o jovem Jacquemain e que defende a velha Aubry é a que pleiteia a delicadeza como única muralha possível contra a violência do mundo.

No dia 9 de março, o dia em que o projeto de lei deveria ser apresentado ao parlamento, haverá uma grande greve dos trabalhadores, tanto do setor público quanto do privado. Quarta-feira negra, é o que prometem. A tempestade ainda está só começando.


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