União Black e o ano de ouro para o funk brasileiro

     

banda-unic3a3o-black-banda-unic3a3o-blackFui ontem ao Vale do Anhangabaú. Pretendia conferir a apresentação da Banda Black Rio, com as participações mais que especiais de quatro grandes ícones da negritude brasileira: Gerson King Combo, Di Melo, Lady Zu e o “Guitarreiro” Luis Vagner. Atrasado, perdi o show. Não bastasse (mas, dessa vez, por estar no trabalho), no dia anterior, perdi também a oportunidade de conferir a Black Rio ciceroneando outros quatro grandes artistas: Carlos Dafé, Paulo Diniz, Hyldon e Tony Tornado.

Em 2000, numa decisão polêmica, o pianista e arranjador William Magalhães, filho do saxofonista Oberdan Magalhães, um dos fundadores da Black Rio, morto em 1984, decidiu reunir nova formação e colocar a banda, cujo nome detém judicialmente, na ativa. A despeito das rusgas com familiares de outros ex-integrantes já falecidos, como o guitarrista Claudio Stevenson, o baterista Luiz Carlos Batera e o trompetista Barrosinho, a recepção à nova Black Rio, no País e no exterior, foi das mais calorosas. No mesmo ano, a banda lançou um novo álbum, com repertório inédito, chamado Movimento. Em 2011, foi lançado o mais recente trabalho, Supernova Samba Funk, pelo selo britânico Far Out Recordings.  

O encontro dos integrantes da Black Rio com a velha guarda do soul e do funk brazuca no Anhangabaú, foi parte das celebrações ao Dia da Consciência Negra. Ganhou nome clichê, mas assertivo: Mestres do Soul. Quem viu diz ter sido incrível. Desavisado da programação completa quando, enfim, cheguei, constatei que o palco havia sido tomado por uma espécie de “intensivão” do chamado funk ostentação, defendido por sete artistas, entre eles, MC Léo da Baixada, MC Thauane, Menor HM e MC Pet Daleste. Nas quase duas horas que fiquei ali, sob um infinito mantra percussivo – leia-se “tchu, tcha, tchugudun, tcha, tcha” –, foi inevitável pensar no fosso criativo que distancia uma geração de outra. Detesto discurso nostálgico e comparações do tipo “naquele tempo era muito melhor”, mas, neste caso, é inegável reconhecer: a diferença é gritante. Se nos anos 1970 nossos soul brothers reverberavam em música, comportamento e até mesmo nas roupas festivas, o lema de altivez de James Brown “Say it Loud I’m Black and I’m Proud” (algo como “Diga alto: sou negro e tenho orgulho!”, veja o pai do funk tocando o clássico no programa Soul Train), parte volumétrica dos manos e minas das periferias e subúrbios brasileiros do século 21 parecem estar mais preocupados, via funk ostentação e suas bases monocórdicas , em enaltecer motocicletas, carrões, relógios caros, joias e um estilo de vida, frívolo e materialista, praticamente inimaginável para a maioria deles.  

Em julho de 1976, depois de fazer uma imersão nos bailes funk e desvendar a nova onda do movimento Black Rio, a repórter Lena Frias publicou extensa matéria no Jornal do Brasil com o título Black Rio – O Orgulho (importado) de ser Negro no Brasil. Apesar da ironia do “importado”, Lena fez retrato mais que positivo da cena. “Uma cidade de cultura própria desenvolve-se dentro do Rio. Uma cidade que cresce e assume características muito específicas. Cidade que o Rio, de modo geral, desconhece ou ignora. Ou porque o Rio só sabe reconhecer os uniformes e os clichês, as gírias e os modismos da Zona Sul; ou porque prefere ignorar ou minimizar essa cidade absolutamente singular e destacada, classificando-a no arquivo descompromissado do modismo; ou porque considera mais prudente ignorá-la na sua inquietante realidade. Uma cidade cujos habitantes intitulam a si mesmos de “blacks” ou “browns”; cujo hino é uma canção de James Brown ou uma música dos Blackbyrds (ouça Do It Fluid); cuja bíblia é Wattstax, a contrapartida negra de Woodstock (veja a íntegra do documentário de Mel Stuart); cuja bandeira traz estampada a figura de James Brown, Ruffus Thomas (veja o músico interpretando Breakdown no Wattstax), ou Marva Whitney (veja a cantora interpretando Things Got To Get Better, na TV, em 1969); cujo lema é: “I am somebody!” (Eu sou alguém!); cujo modelo é o negro americano, cujos gestos copiam, embora sobre a cópia já se criem originalidades.”

Sete dos dez músicos envolvidos na gravação do primeiro disco da União Black (foto: Divulgação / Polygram)
Sete dos dez músicos envolvidos na gravação do primeiro disco da União Black (foto: Divulgação / Polygram)

O hibridismo da música brasileira com as matrizes afro-americanas do funk e do soul era perceptível em trabalhos de artistas consolidados no início dos anos 1970, como Tim Maia, Toni Tornado, Cassiano, e até mesmo o Rei Roberto Carlos, mas, numa esfera menos popular, ele foi explorado por muitos outros artistas, em trabalhos inspirados, como Som, Sangue e Raça, de Dom Salvador e Abolição (leia post de Quintessência! sobre álbum), International Hot, do trombonista Raul de Souza e seu grupo Impacto 8 (ouça a versão de I Got A Feeling, de James Brown) e Tema de Zorra, do maestro Waltel Branco (na verdade, Popcorn With a Feeling, também de James Brown, em versão especialmente feita para trilha sonora da novela Assim na Terra Como no Céu). Mas as tais “originalidades” percebidas por Lena em sua reportagem para o Jornal do Brasil, tornar-se-iam ainda mais latentes no ano seguinte, 1977, quando o movimento Black Rio e o Black Power assolaram as principais capitais do País em festas que chegavam a reunir 10, 15 mil pessoas, como a Soul Grand Prix e o Baile da Pesada, dos DJ’s Big Boy e Ademir Lemos (veja documentário sobre Big Boy).

Impulso extra para a explosão do soul e do funk made in Brasil, em 1977, veio com cinco lançamentos fonográficos de grande qualidade: Black Soul Brothers, a estreia solo de Miguel de Deus (leia post de Quintessência! sobre o álbum); Maria Fumaça, da Banda Black Rio (veja a banda tocando o tema que dá título ao álbum, na TV, em 1983); o primeiro disco, homônimo, de Gerson King Combo (ouça Dez Mandamentos Black) e o debút da União Black, banda de apoio de Gerson, de competência técnica e criativa que em nada deixava a dever à Banda Black Rio.

Homônimo, o disco solo da União Black reuniu dez músicos e foi gravado no Rio de Janeiro, no estúdio Phonogram, da Polygram. Os arranjos foram divididos pela própria banda, Ronaldo Corrêa e Maestro Nelsinho. A direção artística ficou a cargo de Pedrinho da Luz. O álbum registra encontro dos mais felizes do grupo surgido dois anos antes, em 1975. Apesar de não ter uma formação fixa, e chegar a ter 13 músicos, Dom Luiz (voz), Bira (sax e flauta), Ivan Tiririca (bateria), Lula Barreto e Claudio Café (guitarras) eram os músicos mais regulares da União Black – Gerson King Combo também chegou a integrar o grupo, e foi coautor de algumas composições. Entre temas instrumentais e canções, o álbum reúne 12 faixas, algumas marcantes desde a primeira audição, como Geração Black, A Vida, Abelha Africana, Voulez-Vous. Em 2006, a convite do selo norte-americano Commonfolk a União Black foi reformulada para a gravação de um novo disco (ouça Africa Hot Band).

Voltando ao funk ostentação do início do texto, é absolutamente compreensível que tais manifestações artísticas, condenáveis pela ditadura do bom-gosto, existam e reverberem entre o grande público. Afinal, são provenientes de camadas sociais, há décadas, abandonadas e achatadas culturalmente pela mesma elite que, ironicamente, a condena. Mas já que a proposta do dia era celebrar a memória de Zumbi e valorizar a consciência de ter altivez por sua origem e história, vale lembrar que as mesmas mazelas experimentadas pelos jovens de hoje acossavam ainda mais a juventude negra brasileira dos anos 1970, com o acréscimo da sombra nefasta de um sórdido regime militar, que associava negritude a bandidagem. Em seu livro A Era dos Festivais, Zuza Homem de Mello relembra episódio emblemático, o exílio de Toni Tornado, acusado de supostamente liderar um plano de inserção dos Black Panthers no Brasil: “Se Toni fosse branco, talvez tivesse sido diferente. Como não era bem visto pelos militares e ainda exercia uma atividade de pregação social em favor dos negros nos bailes blacks da periferia, um certo dia, em 1972, ‘os homens’ entraram derrubando a porta de seu apartamento. Foi conduzido para a praça XV, levado a Brasília e depois convidado a sair do País.” Quando voltou, três anos mais tarde (esteve no Uruguai, Egito, Angola, Cuba e Tchecoslováquia), o movimento Black Rio começava a se consolidar, mas Tornado abandonaria progressivamente a carreira de cantor e seria acolhido pela Rede Globo como ator, para defender papeis de um racismo velado (capataz, mordomo e afins).

Ouça a íntegra do álbum de estreia da União Black e descubra que Funk brasileiro também pode ser grafado, assim, com F maiúsculo.

Boas audições e até a próxima Quintessência! 


Comments

2 respostas para “União Black e o ano de ouro para o funk brasileiro”

  1. ISSO é que é o verdadeiro FUNK CARIOCA!! E não esta “merda que o Rio nos manda” hoje em dia!

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