A reconstrução de Chico Buarque

chicoAmigo leitor afeito ao mote “álbuns obscuros, mas fundamentais da música brasileira”, esqueça o recorte proposto por esta coluna e celebre conosco os 70 anos desse gigante chamado Francisco Buarque de Hollanda, Chico, para os milhões de íntimos.  Afinal, se o tema deste espaço é música brasileira atemporal, Chico tem credenciais de sobra para ocupar espaço efetivo neste rol de raros. Portanto, o tema de hoje em Quintessência é Construção, álbum de 1971 que foi eleito, em 2009, o mais importante da MPB, em lista da revista Rolling Stone.  Absolutismos a parte, trata-se de obra distinta na extensa discografia de Chico. Vejamos, pois, os bons motivos dessa nobre distinção.

De volta ao Brasil depois de um breve período de exílio, na Itália, motivado pela barra pesada imposta pelo AI-5, destemido, Chico aterrissou na pátria amada em pleno auge do terror de uma nação sobre o comando sanguinolento do general Emílio Garrastazu Médici. Não bastasse o cerceamento do regime militar, ele também era alvo da patrulha estética de parte da intelligentsia brasileira por ser um artista municiado de artifícios musicais aparentemente convencionais que, não bastasse, assumia individualmente seus próprios riscos e não se encaixava em movimento algum.

Diferentemente de Caetano e Gil – os outros dois vértices da “santíssima trindade” da MPB – desde que surgiu no mercado fonográfico, em 1964, Chico Buarque trilhou, solitário, seus próprios caminhos.

Em 1965, os dois baianos arquitetavam teorias que, pouco depois, fundamentariam o Tropicalismo e arregimentariam a adesão de Gal, Nara, Torquato, Capinam, Tom Zé e o maestro carioca, que fez história em São Paulo, Rogério Duprat. Chico jamais integrou movimento qualquer, ou se deixou cooptar por aspirações artísticas coletivas. Enquanto compositor de música popular, suas ambições de cronista da vida ordinária eram norteadas pelo lirismo do seu mestre maior, Noel Rosa. Chico não queria, a exemplo dos baianos, pavimentar um caminho de continuidade da famigerada “linha evolutiva” defendida na virada dos anos 1950 para os 60 por João Gilberto, com o advento da Bossa Nova, embora fosse herdeiro da bossa até a medula. A evolução perseguida por Chico perpetua tradição brasileira consolidada desde as primeiras décadas do Século 20 por artistas geniais, como Noel, que necessitam apenas de um violão, uma seção rítmica sincopada, estrofes e refrões impregnados de lirismo. 

Para silenciar o coro dos caretas disfarçados de progressistas, Chico se reinventou em Construção. E o símbolo máximo dessa metamorfose temporária é justamente a canção quatro do lado A, que dá título a esse álbum cinco estrelas. Muito já se falou sobre a complexa estrutura da letra de Construção, baseada na reincidência de proparoxítonas, e ninguém haverá de contestar que esse é um dos momentos de brilhante lirismo na história da canção popular brasileira do Século 20. Mas Construção jamais teria conquistado tamanha reputação se não houvesse em seu registro um outro toque de genialidade: o arranjo cinematográfico escrito por Rogério Duprat (Ouça Meeting in Braziliatema lançado pelo selo britânico KPM em 1970, no álbum The Brazilian Suite).

Egresso da trupe erudita que incluía nomes como Julio Medaglia (leia entrevista) e Damianno Cozzella (ouça Espelhos Quebrados, com arranjo de Cozzella) e colocou de pernas para o ar a música popular brasileira dos anos 1960, Duprat, havia quatro anos, era coringa do tropicalismo, em trabalhos memoráveis de Gil, Caetano, Gal, Os Mutantes e O Bando. Alheio às “bananas ao vento” da movimentação tropicalista, Chico já havia escrito e definido seus estatutos de compositor, mas conseguiu ir além, com o auxílio da ousadia usual do maestro paulistano.

Quando utilizei acima a expressão “arranjo cinematográfico” para definir a regência de Duprat, o fiz porque não há analogia melhor. O modo como Construção foi registrada por Chico e Duprat, neste álbum antológico, remete a parceria de Alfred Hitchcock e o maestro Bernard Hermann, pois baseia-se em elementos indissociáveis. O arranjo de Duprat torna-se componente narrativo, complementar à tragédia narrada na letra de Chico. Da mesma forma, ninguém jamais se lembrará da cena do banheiro de Psicose sem imediatamente pensar na música de Hermann. Ela potencializa, com eficácia, a tensão já existente na antológica sequência do velho Hitch. Chico recorre a Duprat para enfatizar sua excelência de autor e não para “inaugurar um movimento”, como pretenderam Caetano e Gil. O movimento de Chico é sua própria existência.

Poderíamos prosseguir discorrendo sobre a beleza das outras nove canções desta obra-prima chamada Construção, mas, felizmente, este é álbum familiar para milhões de brasileiros.

Ouça a íntegra de Construção

Em tempo I: Embora seja uma clara afronta à farsa desenvolvimentista do “milagre brasileiro” do general Médici, Construção passou impune aos censores. Fato que não se repetiria nos anos seguintes, quando Chico tornou-se alvo preferencial da ditadura e, inclusive, inventou um pseudônimo, Julinho da Adelaide, para driblar a mordaça. Sob o codinome, ele gravou o clássico Jorge Maravilha (veja abaixo o vídeo)<

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Em tempo II: Post escrito sob audição de um gigante do jazz que partiu ontem, aos 85 anos, o pianista Horace Silver. Compositor dos mais relevantes para a música popular instrumental do século 20, Horace foi também um grande entusiasta da música brasileira e o responsável por levar ao selo americano Blue Note nosso genial maestro Moacir Santos. Ouça Kathycomposição, de Moacir, interpretada pelo amigo Horácio Silva – como Horace era carinhosamente chamado pelo maestro pernambucano.

Veja também Horace Silver interpretar, em 1968, um de seus clássicos: 18 minutos de pura beleza!:


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