Nem sempre faço escolhas prévias para os álbuns reverenciados nesta coluna. Hoje, por exemplo, antes de definir qual deles estaria aqui, me dei conta que coincidentemente os últimos quatro títulos (Elza Pede Passagem, Fa-Tal, Gal A Todo Vapor, Jards Macalé e Na Rua, Na Chuva, na Fazenda…) foram dedicados a trabalhos dos anos 1970, hoje menos lembrados, que obtiveram grande êxito comercial ou repercussão em meios especiais, e ocupam espaço fundamental nas trajetórias de seus autores. Álbuns de força perene, acolhidos com grande afeto por um público sensível que soube apreciar o melhor de nossa rica produção popular. Portanto, antes de voltar a falar de discos mais obscuros – na semana que vem, faremos um novo passeio pelos anos 1960 – fechemos, pois, uma quina de títulos setentões para reverenciar um autor inédito por aqui. O escolhido de hoje é um campeão de audições, o segundo álbum do compositor e grande intérprete carioca Luiz Melodia, assertivamente intitulado Maravilhas Contemporâneas, haja visto que os dois adjetivos, aplicados no singular, cabem como luva para definir essa obra concisa, que se tornou atemporal (com o perdão do comentário invasivo, para mim, a despeito de seu grande antecessor, Pérola Negra, esta é a obra-prima do artista nascido no Morro do São Carlos, um dos berços do samba carioca, no bairro do Estácio, zona Norte do Rio de Janeiro).
E foi justamente em São Carlos que aconteceu a descoberta desse talento precoce. Luiz Carlos dos Santos tinha apenas 19 anos quando recebeu a ilustre visita do poeta Waly Salomão. O baiano subiu o morro atrás de um segredo dos mais quentes: chegou lá por recomendação de sua amiga Rose, habituée das rodas de samba, que ficou fascinada ao conhecer a leva de brilhantes composições apresentadas pelo menino esquálido. Estarrecido com a força criativa de Luiz, Waly saiu em campanha de projeção do nome do compositor, inserindo o rapaz nos meios influentes da Zona Sul carioca. Não tardou para a novidade ser reverberada por outro grande poeta, o também jornalista, piauiense, Torquato Neto, em sua coluna Geleia Geral, no jornal Última Hora. Logo, escoltado por seu violão, Luiz passou a frequentar encontros musicais nas casas de Suzana de Moraes, filha do poetinha Vinicius, e do “maldito” Jards Macalé (leia post sobre o primeiro álbum do compositor). Mas a maior vitrine alcançada por ele, naquele ano de 1971, foi mesmo o show Gal a Todo Vapor. Bastou uma apresentação de Pérola Negra, feita pessoalmente pelo próprio Luiz, por recomendação de Waly, para Gal apaixonar-se pela canção, e emprestar sua voz pungente a uma interpretação, carregada de emoção, em seu novo show. Produzido pelo poeta baiano, sob o pseudônimo Waly Sailormoon, o espetáculo tornou-se grande sucesso de público no Teatro Thereza Rachel, em Copacabana, ganhou registro no LP Fa-Tal – Gal a todo vapor (saiba mais) e colocou de vez o nome Luiz Melodia na boca da juventude carioca (apropriado da alcunha artística de seu pai, o sambista Osvaldo Melodia, um dos bambas do Morro do São Carlos, reverenciado por Luiz no álbum Estação Melodia, o mais recente dele, lançado em 2009).
Em 1973, por recomendação do instrumentista e arranjador baiano Perinho Albuquerque, imediatamente acatada pelo diretor artístico da Philips, o grande Roberto Menescal, Melodia, enfim, entrou em estúdio para lançar seu cultuado álbum de estreia, Pérola Negra. Em matéria do repórter Marco Aurélio Canônico, publicada no jornal Folha de S. Paulo e comemorativa aos 40 anos do lançamento de Pérola Negra, Melodia relembrou aquele momento mágico e divisor, tempo de grandes transformações em sua vida: “Eu não tinha a fissura de ser artista. Gostava de tocar e de cantar, mas não pensava em ganhar a vida com música. Tive a felicidade de estar na hora e no local certos”.
Outro fator determinante para o sucesso imediato de Luiz Melodia foi o fato de ele estar, então, mercadologicamente representado pelo empresário Guilherme Araújo, nome forte na indústria fonográfica, célebre por dar voz aos tropicalistas: “Eu tinha, de certa forma, costas bem quentes: ele (Guilherme) tinha todo mundo, o Caetano, o Gil, a Gal. Me tornei o caçula, tinha todo um aparato que confiei e foi consistente”, relembrou Melodia ao repórter.
Mas o sucesso imediato de Luiz não se deveu ao fato de estar esteticamente alinhado com os tropicalistas. Longe disso, seu álbum flertava com texturas acústicas que ora lidava com estruturas de blues, outrora com o rock, com o samba. Havia nele elementos antropofágicos, mas sutis e muito distantes das ações panfletárias e do rebuliço estético de Gil e Caetano. Fato que evidenciou grande personalidade do compositor. Predicado este, elevado às melhores consequências em Maravilhas Contemporâneas, seu segundo álbum, de 1976.
À primeira audição, já não há como negar: é um outro Luiz Melodia que salta aos ouvidos. Fator determinante para essa percepção são os arranjos exuberantes, sem pecar por excessos, na contramão do despojamento elegante de Pérola Negra. Tamanho foi o requinte na escolha dos timbres e paisagens sonoras de Maravilhas Contemporâneas que há nele até mesmo uma cítara – instrumento de origem oriental, popularizado no ocidente pelos Beatles em clássicos como Tomorrow Never Knows e Within You Without You, e que foi tocado no álbum de Luiz pelo também guitarrista do disco, Perinho Santana, em Baby Rose.
Coordenado por João Araújo, “manda-chuva” da Som Livre e pai do futuro astro do rock Cazuza, o álbum foi lançado pelo selo global e produzido por Guto Graça Mello. Nele, é patente o acerto de escolhas de Melodia, que reuniu um time da pesada para o registro de Maravilhas Contemporâneas. A começar pelo par de arranjadores, Oberdan Magalhães, líder da Banda Black Rio (que também toca sax alto, tenor e flauta transversal, com exceção de Juventude Transviada, cuja flauta foi gravada por Pestana), e o multi-instrumentista Perinho Albuquerque. Pedra 90 da turma baiana, desde os primórdios de Caetano e Bethânia, nos anos 1960, Perinho tocou e escreveu arranjos para Drama – Anjo Exterminado (1972), de Bethânia, e Araçá Azul (1973), de Caetano. Como arranjador, instrumentista e/ou produtor, também foi figura central em outros clássicos da MPB, entre eles Chico e Caetano, Juntos e Ao Vivo (1972), Cantar, Gal Costa (1974), Sinal Fechado (1974), de Chico Buarque, Gil e Jorge (1975, leia post) e Doces Bárbaros (1976).
O encontro entre Oberdan e Perinho, no estúdio carioca Somil, lógico, foi marcado também pela alta circulação de músicos experimentados. Entre eles: Luiz Carlos Batera, parceiro de Oberdan no emblemático noneto Abolição, de Dom Salvador (leia post de Quintessência sobre o único álbum do grupo); o gaitista Mauricio Einhorm, autor de clássicos da bossa nova, como Batida Diferente, escrita com Durval Ferreira; Frederico Mendonça de Oliveira, ás da guitarra, egresso do Som Imaginário, conhecido como “Frederyko” ou “Fredera”; o saudoso trompetista carioca Marcio Montarroyos; os baixistas Jamil Joanes (da Banda Black Rio) e Valtencir; Octavio Brito, nos sintetizadores; Chico Batera e Alberto das Neves, nas percussões; e os pianistas Tomás Improta e Cidinho Teixeira, a cargo dos sofisticados timbres do piano elétrico Fender Rhodes.
Músicos e arranjadores à parte, fecham o pacote, com sopros de genialidade, as letras de Melodia que, não por acaso, hoje é tratado por muitos como “Poeta do Estácio”. Pérola Negra já havia escancarado esse dom tamanho do compositor, mas em Maravilhas Contemporâneas essa faceta é ainda mais evidente, em faixas como Congênito, Presente Cotidiano, Veleiro Azul, o clássico instantâneo Juventude Transviada, grande sucesso de 1976, impulsionado por sua inclusão na trilha da novela Pecado Capital, e Questão de Posse – esta, na estrofe final, presta homenagem ao, então, recém-nascido primogênito do compositor, com a frase “Iran, estou contigo nêgo / Iran, meu filho tenha sossego”.
Pouco depois de lançar Maravilhas Contemporâneas, Melodia sofreu um acidente automobilístico que o afastou dos palcos por quase um ano, adiando para 1977 a aguardada turnê de lançamento deste álbum que, com todos esses elementos somados e a maturidade artística de seu autor, tornou-se histórico na discografia recente da MPB.
Ouça a íntegra de Maravilhas Contemporâneas
Notas de rodapé:
Este colunista pode estar redondamente engando e precisa, inclusive, pesquisar o assunto na autobiografia Verdade Tropical, mas nutro grande suspeita de que a parceria de Caetano com a Banda Black Rio em Bicho Baile Show – álbum ao vivo, de 1978, resultante de shows feitos no Teatro Carlos Gomes, no Rio – tenha sido motivada pela turnê de Maravilhas Contemporâneas que, após a recuperação de Melodia, seguiu a todo vapor, com outros integrantes do grupo, como o guitarrista Claudio Stevenson e o pianista Cristóvão Bastos.
Em maio de 2011, em entrevista concedida à Brasileiros (leia a íntegra), o maestro Arthur Verocai deu o seguinte depoimento sobre a experiência de trabalhar com Melodia em Mico de Circo, de 1978, sucessor de Maravilhas Contemporâneas (ela já havia, antes, arranjado Prá Aquietar, de Pérola Negra):
“Sou grande fã do Melodia. Estava escrevendo os arranjos de Presente Cotidiano (veja o clipe feito pelo Fantástico), aquela que diz assim: ‘Tá tudo solto na plataforma do ar/tá tudo aí…’. Essa música é uma marchinha em compassos de três tempos, mas ele cantava um compasso em três e outro em quatro: ‘Quem vai querer comprar banana…’. Daí, eu me perguntava: ‘Essa música é em três ou em quatro? Se eu fizer assim, da maneira que está, nego vai dizer que eu sou doido!’. Mas ele não estava nem aí se eram três, quatro ou sete. Fazia isso sem pensar. Não tinha essa de dizer: ‘Vou fazer uma música em três por quatro!’. Simplesmente acontecia, pela força intuitiva do cara.”
Boas audições e até próxima Quintessência!
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