A voz de um povo

Foto: Divulgação
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Em 2006, o cineasta palestino Hany Abu Assad conquistou a atenção do público e da imprensa internacional. Seu filme Paradise Now, centrado nos dilemas de dois homens-bomba, ganhou o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e concorreu ao Oscar, causando polêmica entre grupos israelenses que acusam o diretor de fazer “apologia ao terrorismo”. Sete anos depois, ele lançou Omar, que também tratava de um tema polêmico: os chamados colaboradores, palestinos que trabalham para o serviço secreto israelense. O filme foi exibido na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes. Depois de abordar assuntos tão polêmicos, o diretor optou por um tema mais leve. Em seu mais novo trabalho, O Ídolo, ele conta a história verídica de Mohammad Assaf, jovem cantor de Gaza que, em 2013, ganhou a versão árabe do American Idol, causando comoção entre os palestinos. O filme pode ser conferido neste domingo (23) na programação da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (veja aqui).

Já nas primeiras sequências do longa-metragem é impossível não reparar na paisagem devastada da Faixa de Gaza, que sofre desde 2007 com os bloqueios impostos pelo governo israelense. São ruas cobertas de lixo e carros abandonados que revelam a precariedade de um dos locais mais pobres do mundo, do qual é impossível sair sem o consentimento das forças israelenses. Este é um dos primeiros longa-metragens rodado em Gaza nos últimos 20 anos, período marcado por diversas invasões militares e a eleição do grupo radical Hamas.

É nesse contexto de pobreza e precariedade que se passa a história de Mohammad, interpretado quando criança por Kais Attalah e depois pelo ator Tawfeek Barhom. O longa-metragem começa com ele, a irmã Nour e mais dois amigos tentando formar uma banda. Esforço que pode parecer simples, mas que em uma região como Gaza, torna-se uma verdadeira epopeia, já que conseguir instrumentos musicais não é uma tarefa fácil. É partir da perspectiva desse grupo de crianças que se dá a primeira metade do filme. Esse olhar ingênuo confere uma certa leveza a situação drástica da região, o que estabelece um diálogo com outros filmes como o chileno Machuca ou o espanhol A Língua das Mariposas. Em O Ídolo, o público acompanha as aventuras de Mohammad e seus amigos, enquanto se depara com os problemas da região, desde o hospital no qual não há tratamento para a insuficiência renal de Nour até o próprio extremismo religioso, que aparece nas falas de alguns personagens que associam a música ao pecado.

Em uma cena simbólica, os amigos se divertem andando de bicicleta, assim como qualquer criança no mundo.  Porém, tem seu trajeto interrompido por um obstáculo peculiar: o muro que separa a Faixa de Gaza de Israel. As crianças olham desconcertadas para o bloqueio, que revela a segregação que os refugiados de Gaza são submetidos, em um regime que autores como o historiador israelense Ilan Pappe definem como uma situação de apartheid. Essa cena remete a outras já filmadas por Hany Abu Assad. Desde o seu primeiro trabalho O casamento de Rana até os mais recentes, a crítica à política israelense aparece nos detalhes e na própria paisagem, não precisando ser evidenciada em falas ou discursos.

Ao longo do filme, o público assiste à transformação de um menino sonhador em um homem conformado, que precisa trabalhar como taxista para sobreviver e enfrentar uma rotina da qual parece não haver saída, num efeito de circularidade muito comum na cinematografia palestina. Como é possível pensar em qualquer tipo de futuro quando não parece haver desfecho possível para o conflito? Essa questão permeia os filmes da região, mostrando uma juventude desiludida, especialmente depois do fracasso dos famosos acordos de Oslo, tentativa de paz estabelecida entre o primeiro ministro de Israel Yitzhak Rabin e o representante da OLP Yasser Arafat em 1993.

No restante do filme, o público acompanha a ascensão de Mohammad, quando ele finalmente consegue sair de Gaza para participar do reality show no Cairo. Depois de inúmeras apresentações e sob grande pressão, ele vence o concurso. Sua vitória causa grande comoção entre os palestinos, o que o diretor demonstra, em uma escolha acertada, com imagens de arquivo, que emocionam ao mostrar o sentimento de união que toma a população de um lugar tão marginalizado quanto Gaza. No entanto, diferentemente de Paradise Now, as escolhas tanto de roteiro quanto de montagem fazem com que O Ídolo seja uma filme mais comercial, no qual não há conflitos, mas um protagonista por quem o público deve torcer. Seu impacto é menor do que os outros trabalhos do diretor, porém ainda assim oferece um retrato interessante do cotidiano em Gaza e da arte como forma de resistência.


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