Julián Fuks comenta os escritores que moldaram sua forma de pensar a literatura

Com apenas 35 anos, Julián Fuks já é um dos principais escritores do País. Seu livro mais recente, “A Resistência”, em que aborda temas espinhosos, como a relação com o irmão adotado e a ditadura argentina, ganhou o Jabuti de Livro do Ano e ficou em segundo lugar no Prêmio Oceanos.

Cultura!Brasileiros perguntou a ele quais foram os escritores que moldaram sua forma de pensar literatura. Leia as respostas: 

Daniel Defoe:

Defoe é um dos patriarcas do romance e particularmente de uma atitude que ganhou força em tempos recentes, que é a construção de um discurso ambíguo entre a realidade e ficção, a construção de um pacto ambivalente entre o leitor e o autor, em que o leitor passa a acreditar muito fortemente naquilo que o autor narra e isso transforma completamente a relação do leitor com o livro em si. Sinto que algo disso se reconstitui em tempos recentes a partir da autoficção.

Gustave Flaubert:

Flaubert é esse primeiro grande artífice da linguagem, pai em grande medida de uma postura critica sobre o próprio fazer literário. Preocupado constantemente com as possibilidades do narrar, obsessivamente entregue à labuta da palavra. Curiosamente ele se converte não só na referência para as pessoas preocupadas com esse tipo de postura mas também para o seu campo oposto, para aqueles preocupados com a construção cuidadosa de uma história e o relato realista de uma existência. O caso do Flaubert é um caso muito peculiar, porque ele é uma herança em disputa. Há quem queira que o Flaubert represente o ato mais eficiente de narração de uma história e há quem queira que ele seja o contrário disso, o ato entregue à construção minuciosa de uma linguagem. O próprio Flaubert dizia isso, se via como um sujeito dividido entre dois fantasmas, duas tendências que conviviam dentro dele. Acho que todo escritor em alguma medida reflete essa divisão que o Flaubert soube expressar tão bem.

Joyce, Proust e Virginia Woolf:

Acho que os três juntos, Proust, Joyce e Virginia Woolf, fizeram a reflexão necessária e transformadora do que era o realismo até então e deram uma complexidade muito maior à compreensão da existência humana, à compreensão sobre os que fenômenos de consciência. Depois deles a narrativa ganha um outro caráter, ganha uma outra profundidade, da tal forma que já não é possível escrever com certas ingenuidades anteriores. Eles conseguem conjuntamente abater um dos fenômenos mais importantes da história da literatura que é o realismo mais estrito no século 19, particularmente na França. E, curiosamente, o abatimento do realismo é um gesto profundamente realista quando feito por esses autores, pois eles abatem um realismo convencional para torná-lo mais real. E são de fato capazes de fazer obras como discursos muito críticos à própria construção da linguagem, muito críticos às formas do passado, mas ao mesmo tempo muito tributários à realidade do momento, muito acordes com o presente que eles viviam.

Borges:

Borges, sem ser um romancista, acaba sendo o principal artífice daquilo que eu considero a postura crítica mais desejável ao romance, que é trazer a reflexão sobre as suas próprias possibilidades, as possibilidades de narrar, os limites do pensamento e os limites da construção poética. E isso ele faz conseguindo atravessar com muita fluidez as fronteiras entre gêneros, fazendo uma poesia que se torna metafísica em muitos aspectos, fazendo ensaios que se tornam muito poéticos. E ele faz isso tudo a partir da América do Sul, ele traz um processo de reflexão crítica sobre a literatura com uma vivacidade impressionante, uma riqueza poética e uma riqueza expressiva que outros escritores carecem.

Juan José Saer:

Ele é talvez o principal herdeiro do Borges, acrescentando aí um grau de realismo no retrato de certa região da Argentina, e uma importância histórica nos fenômenos que traz à tona na sua literatura, inclusive com reflexão sobre a ditadura e no exemplo de como escrever com extremo rigor e produzir uma obra muito prolífica ao longo de 40 anos.  É impressionante a constância do Saer, qualquer livro dele que você tome nas mãos tem uma qualidade única, não é concessivo a nenhuma moda, pelo contrário, guarda uma coerência enorme internamente.

Clarice Lispector:

É uma exceção importantíssima na literatura brasileira, pois é a primeira pessoa, ou uma das primeiras, a contrariar com muita pertinência essa narrativa brasileira tão próxima da sociologia, tão marcada pela reflexão sobre a identidade brasileira. A Clarice pega tudo isso e transforma em outra coisa completamente diferente na obra dela, produzindo com uma sofisticação e uma complexidade estonteantes para o leitor.

W.G. Sebald:

Sebald é nesse momento o escritor que mais tem me marcado. Acho muito interessante o modo com que ele abandona toda essa disputa do realismo como método e se preocupa muito mais estritamente com o real, com as sobras que o real aborta para o escritor, e aquilo que o escritor pode escrever a partir delas. Ele escreve a partir das sobras de um processo histórico das formas literárias, mas também a partir das formas do presente, as formas da experiência histórica e cotidiana das pessoas com quem ele vai cruzando pelo caminho. O resultado disso é uma coisa muito singular, que tem influenciado uma série de autores de diversas partes do mundo. Aqui sinto algo de mais forte que está acontecendo na literatura latino-americana é uma tentativa de assimilar essa lógica aos nossos contextos históricos e, a partir das ditaduras latino-americanas e os traumas do passado, por exemplo, produzir uma reflexão sobre o presente. O Sebald faz uma autoficção nada narcisista. A voz identificada com o próprio autor está ali para funcionar como uma espécie de autoridade sobre o real, um sinal de veracidade da obra sem que a obra se converta num discurso umbiguista, narcisista, solipsista. É uma obra que está interessada fundamentalmente no outro.

Conteúdo!Brasileiros: 
O sucesso de um fracasso – entrevista de Julián Fuks a Cultura!Brasileiros 7


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