O desbunde tropicalista de Chico Anysio e Arnaud Rodrigues

CaetanoeNovosBaianos“Faço do meu canto a neura existencial / O conteúdo do cotidiano, o dia a dia da vida / A eletrônica está substituindo o coração / A inspiração passou a depender do transistor / O poeta de aço, de poesia programada, é demais para os meus sentimentos, tá sabendo?”.

O “papo cabeça” supracitado – para defini-lo com uma gíria bem anos 1970 – é proferido pelo personagem Baiano, no decorrer do registro de Nega, segunda faixa do álbum E?. Lançado pela gravadora CID, o LP fez grande sucesso e consagrou a feliz parceria entre os humoristas Chico Anysio e Arnaud Rodrigues. Estivessem inseridos em um LP de Caetano Veloso ou de Chico Buarque, os versos tornar-se-iam máximas replicadas pela juventude intelectualizada e politizada que combateu o regime militar no Brasil dos anos 1970.

Lançado em 1974, depois do enorme sucesso do quadro criado por Chico para o programa semanal Chico City, E? chegou a outros destinatários e atingiu um espectro diverso. Daí seu enorme valor, pois, por mais cifradas que fossem as mensagens contidas no álbum, pequenos “recados”, como o que abre esse texto, instigavam o ouvinte a suspeitar que as coisas não andavam nada bem no seu amado Patropi. Com a visibilidade de nosso maior humorista, questões urgentes do cotidiano do País “caíram” nos ouvidos e na boca do povo, e deixaram em alguns a amarga percepção de que era melhor rir para não chorar. Se o clima sombrio da repressão pairava no ar, na tentativa de amortizar o terror daqueles dias, os generais vendiam as delícias do  Milagre Econômico – diga-se, financiado com empréstimos infindáveis que legaram ao País décadas de endividamento com o FMI e outros credores internacionais.

Com AI-5, general Médici, e o recrudescimento da violência do Estado, o primeiro quinquênio dos anos 1970 foi marcado pela quase extinção dos grupos de resistência ao regime militar. Aos remanescentes, não restaram muitas escolhas: partir para a guerrilha ou fugir do País e viver clandestinamente em algum canto seguro e bem distante daqui. E a crônica desse momento está implícita, com muita astúcia, até mesmo para driblar os censores, em E?, assim como em todas as escolhas futuras de Baiano e Paulinho, pseudônimo adotado por Arnaud.

A dupla foi formada no início de 1973, quando Chico criou o personagem Baiano e Arnaud decidiu prestar também homenagem aos emergentes Novos Baianos sugerindo o nome composto (confira post de Quintessência dedicado a É Ferro na Boneca!). A dupla provocava as idiossincrasias de Caetano e Gil que, um ano antes, haviam voltado do exílio em Londres, mas em texto memorial, onde relembra os dias de parceria com Arnaud, Chico defendeu argumentos mais reverentes: “O personagem baiano nasceu na época do exílio do Caetano Veloso, um período em que ele quase não podia falar, por isso o tipo Baiano era monossilábico”.

O personagem Baiano: criado para o humorístico Chico City, tornou-se grande sucesso musical ao formar par com Paulinho, personagem do humorista e compositor Arnaud Rodrigues
O personagem Baiano: criado para o humorístico Chico City, tornou-se grande sucesso musical ao formar par com Paulinho, personagem do humorista e compositor Arnaud Rodrigues

Apesar do aparente tom de deboche com os ícones máximos da MPB, basta uma audição para concluir que a brincadeira era para lá de séria. Vô Batê Pa Tu, o grande sucesso de E?, é exemplar para a defesa dessa tese. Escrita a quatro mãos por Arnaud e o Rei do Sambalanço, Orlandivo (leia post de Quintessência sobre Orlandivo com João Donato), a canção trata de temas dos mais pesados: a delação sob tortura e o clima de silêncio imposto pela censura. “O caso é esse: dizem que falam, que não sei o quê / Tá pra pintar ou tá pra acontecer / É papo de altas transações / Deduração, de um cara louco que dançou com tudo / Entregação com dedo de veludo / Com quem não tenho grandes ligações”, diz a letra de Vô Batê Pa Tu.

Em Aldeia o alvo é o Milagre Econômico: “Em cada rosto uma expressão / Em cada bucho a digestão / Um novo carro / Nova capa / Enquanto o velho me pede pão / O pão nosso de cada dia dão-nos hoje / Creditai nossas dívidas / Assim como não nos perdoam nossos credores”. No hilário baião Urubu tá Com Raiva do Boi (a ave necrófaga indigna-se com o bovino que não morre), única canção que não é de autoria de Chico e Arnaud (foi composta por Geraldo Nunes e Venâncio) a veia tragicômica do LP chega ao ápice no discurso de Baiano que, primeiro, divaga em tom apocalíptico “O medo, a angústia, o sufoco, a neurose, a poluição, os juros, o fim… / Nada de novo / A gente de novo só tem os sete pecados industriais”. Ao fim da terceira estrofe, com fina ironia, ele prossegue: “Ai a gente encontra um cabra na rua e pergunta: ‘Tudo bem?’ / E ele diz pra gente: ‘Tudo bem!’ / Não é um barato, Paulinho? / É um barato!”. No final da canção, Baiano retorna para concluir, impiedoso: “Nada a dizer… Nada… Ou quase nada / O que tem é a fazer: tudo / Na rua, a obra do homem, o cheiro de gás, o asfalto fervendo, o suor batendo… o suor batendo”. Como sugere a aparência “riponga” de Baiano e de Paulinho, o disco também versa sobre o desbunde e os estatutos da geração flower Power. Em Dendalei (corruptela de “dentro da lei”) a estrofe que sucede o primeiro refrão celebra o desprendimento e o hedonismo dos hippies: “Sou fã da viração do vento / Sou fã do livre pensamento / Sou fã da luz do nascimento / Sou fã aqui do melhor momento!”.

Letras a parte, a qualidade musical de E? é inquestionável. O álbum promove a fusão de ritmos brasileiros e estrangeiros, com extrema felicidade, e inscreve Chico e Arnaud como defensores do “Som Universal” tão perseguido pelos tropicalistas. O LP reúne doses generosas de rock, samba, baião, xaxado, maracatu, bossa, choro, ciranda e soul. Infelizmente, a ficha técnica não foi creditada pela CID, mas a direção artística dessa pequena obra-prima ficou a cargo de um craque de nossa música, o compositor e instrumentista Durval Ferreira. Egresso da primeira geração da Bossa Nova, “Gato”, como Durval era tratado pelos amigos por conta de seus olhos azuis, liderou, com Eumir Deodato, o lendário combo de samba jazz Os Gatos, que lançou dois álbuns, hoje, raros e disputados por colecionadores: Os Gatos  (1964) e Aquele Som dos Gatos (1965).

A parceria entre Chico e Arnaud ainda renderia mais três álbuns de Baiano, Paulinho e os Novos Caetanos (Baiano e Os Novos  Caetanos, de 1975, A Volta, de 1982, e Sudamérica, de 1985). Além deles, ao lado de Arnaud Chico produziu, em 1975, outra pérola: o álbum Azambuja & Cia, que conta com o auxílio luxuoso do trio Azymuth (ouça Ao Bililico). No hiato entre o álbum de 1975 e o de 1982, Chico lançou Baiano e Amaralina (ouça Cuca Fresca), uma homenagem a Elba Ramalho. Título raro, porém obrigatório é Murituri, álbum solo de Arnaud, dos mais primorosos, com a participação do guitar-hero tropicalista Lanny Gordin (ouça a faixa título). Em 1976, colhendo os frutos da enorme projeção de seu personagem, Arnaud lançou também o álbum O Som do Paulinho (ouça a íntegra).

Capa do LP O Som do Paulinho lançado por Arnaud Rodrigues em 1976
Capa do LP O Som do Paulinho lançado por Arnaud Rodrigues em 1976

A propósito do sucesso da dupla, no mesmo texto em que Chico explica a gênese do fenômeno Baiano e Os Novos Caetanos, o humorista dá boas pistas de quão grandioso ele foi: “Com o sucesso de vendas do LP, o senhor Harry Rozemblit, dono da companhia de discos CID, comprou três coberturas na Avenida Delfim Moreira (no Leblon, um dos endereços mais caros da Zona Sul carioca). O Eddie Barclay (o poderoso dono do selo francês Barclay), na época, nos convidou para a Europa para participar do Miden, em Cannes, e eu não fui. Disse a ele que tinha que fazer um show em Curitiba. Que loucura a minha! Ele ficou sem entender. Como é que dois artistas esnobavam um dos maiores encontros da música internacional do planeta?!”.

Para não deixar dúvidas sobre a projeção internacional de E?, eis aqui uma prova inconteste, a deliciosa releitura da cantora sueca Sylvia Vretmar para Vô Batê Pa Tu.

Como bem sabemos, infelizmente, Chico e Arnaud já partiram: o Rei do Humor em março de 2012, em consequência das complicações de uma grave infecção pulmonar que o levou à falência múltipla de orgãos; e o saudoso Paulinho no carnaval de 2010, em um trágico acidente de barco no Tocantins. Mas o legado de alegria e reflexão deixado por essa dupla da pesada, para fechar com mais uma gíria setentona, é atemporal e atravessará décadas.  

Confira a íntegra de E?

MAIS: 

Veja vídeo de Só Pa Dá Um Toque, primeira composição do lado B de A Volta, terceiro álbum da dupla, lançado em 1982 

Em tempo: os atores Gero Camilo  e Luís Miranda tem apresentado, com alguma frequência, o espetáculo Aos Baianos e Novos Caetanos (confira reportagem da TV Cultura)

Flyer de uma das apresentações do projeto de Gero Camilo e Luís Miranda
Flyer de uma das apresentações do projeto de Gero Camilo e Luís Miranda

Boas audições e até a próxima Quintessência!


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